Na região era comum um intercâmbio descontraído e relações amigáveis entre os moradores, barristas. Sempre havia interesses mútuos por tudo dentro da comunidade. Os costumes, direitos e deveres eram orgulhosamente respeitados e só excepcionalmente ocorria alguma divergência. Todos viviam como uma grande família. Guardávamos a rotina do dia após dia na memória e na ponta da língua: silêncio e sossego durante a noite; agitação e barulho só nos instantes de pico no trânsito; nos dias da distribuição do gás de cozinha; nas noites de São João e São Pedro e no dia do Brasil Campeão. Não havia perigo nas ruas, muito menos violência doméstica.

O céu de brigadeiro não é eterno e a tradição de tranquilidade foi interrompida após a construção e inauguração de um templo religioso, na parte central do bairro, para agenciar os interesses de Deus na região. Frequentar a igreja era um investimento para a vida futura e devíamos ter em mente que Jesus nos levaria a um mundo espiritual longe da terra, e os pastores, sensíveis, criativos e humanos, exerceriam as funções de mediadores e árbitros encarregados de gerenciar o templo e intermediar os caminhos entre a terra e o céu. Desprezar a luxúria e a avareza, frequentar a igreja e contribuir com o dízimo eram os primeiros passos para que as pessoas alcançassem paz e justiça eternas após o derradeiro conflito.

Dois potentes alto-falantes, com poder de longo alcance, foram instalados na parte mais alta da igreja para que as mensagens de Cristo entrassem “goela abaixo” em todos os lares. A propaganda religiosa vendia a marca Jesus em grosso e em retalhos numa altura insuportável, afetando a qualidade de vida da população. A poluição sonora mudou as características dos moradores, instalando desequilíbrio emocional, perda de habilidade, agressividade, insônia, dores de cabeça, zumbidos e tonturas. Houve uma transformação no modo como as pessoas se comportavam, com o aumento de consumo de costumes medievais e a atmosfera não era mais a de outrora. O perfil geral dos frequentadores do templo era cientificamente rasteiro, incapaz de filtrar conteúdos enganosos. A cultura de um só livro não ensina a separar com precisão o que deve ser absorvido do que deve ser descartado e não prepara o nosso cérebro para a vida e o futuro como realmente são. Os religiosos vivem no mundo da lua e promessas atraentes provocavam impulsos incontroláveis e uma correria, sem qualquer avaliação cuidadosa ou racional. No fim das contas, nos templos, as pessoas ouvem durante anos, todos finais de semana, as mesmas coisas sem jamais descobrir algo mais interessante do lado de fora. A fé transforma o homem, sem ciência, em jerico de montaria.

O serviço de alto-falantes anunciava sem escrúpulos uma enxurrada de avisos para o talk-show religioso. Coisas que a lógica fria e dura nos dizia serem promessas impossíveis, entretanto, desmontar crenças, mesmo absurdas, é difícil e leva muito tempo. A igreja prometia, em nome de Jesus, curar aleijados, paralíticos, cegos, surdos, mudos, epiléticos, cancerosos e encontrar pessoas desaparecidas. Aqueles que não merecessem a cura teriam a doença abrandada. Quando novas ideias surgem, nem sempre abandonamos as explicações anteriores e a demora na atualização deixa margem para a ação de manipuladores de práticas religiosas populares.

Na sexta-feira, ao meio dia, a Igreja vivia seu apogeu. A congregação reunida dirigia uma sessão de libertação para retirar espíritos maléficos de dentro das pessoas e observava-se uma sequência forjada de descarregos e exorcismos. Diante de gritos estridentes e manobras com símbolos sagrados para afugentar o demônio, um refrão libertador ganhava altura, emoção e invadia as nuvens e os céus em tom crescente: sai, sai, sai, sai, sai Diabo.

Protocolos divinos sem bases científicas para tratar delírios e alucinações comuns em psicóticos, bipolares e portadores de transtornos dissociativos podem ser fortalecidos por respostas ocasionais à hipnose, orações, cantos, sapateados e mandingas. Tratamentos alternativos de faz de conta são usados no lugar de remédios certos por religiosos desonestos, desde a Idade Média.

Muitas das soluções para melhorar a qualidade de vida das pessoas passam pelo bom senso e cumprimento de regras sociais. Não houve mais conforto suficiente para conversar, trabalhar, estudar e dormir. A lei permite o livre exercício de cultos religiosos, mas pune os exagerados decibéis tão agressivos quanto pau de arara e choque elétrico nos testículos. Sempre encontrei dificuldades para compreender: o significado e a dimensão de Deus e do Diabo; de onde vieram e para onde vão; como sobrevivem em todas as estações do ano e em diferentes temperaturas; por que os dois punem com perversidade e um representa o bem e o outro representa o mal e o porquê de um ter estrutura organizada e avarenta de arrecadação e o outro não. Certo dia, ainda adolescente, quando voltei para casa durante a madrugada escura minha mãe me disse: “não dormi esperando você chegar. Você está de volta como pedi nas minhas orações. Deus nos protege no controle de tudo que nos rodeia”. Rebelde, respondi: “Deus só esquece da gente quando o avião cai e quando estamos no meio de bala perdida”. O futuro está diante de nossos olhos e precisamos achar os meios para ocupar nosso lugar.

Para alcançar a paz, era preciso mudar a marcha e enfrentar o desafio sem derramamento de sangue. A delegacia de polícia era o lugar certo para frear a força divina e seu apetite expansionista, com som de trio elétrico, por cima de paus e de pedras. Depois de audiência demorada e inúmeros aparetes, o delegado distribuiu o resumo das decisões e franqueou a palavra para quem tivesse alguma dúvida.

Fiz minha intervenção: “o diabo nunca sai de moda, e devido à sua agressividade e violência não pode dispor de um segundo de liberdade. Ao realizar o exorcismo, é conveniente que a igreja tenha uma jaula de aço, algemas de punho e tornozelos e gente especializada em captura para que assim possa manter o Demônio preso em isolamento completo e vigilância contínua, garantindo a integridade da população. Tenho muito medo que o Diabo, ao fugir da igreja, entre em meu consultório. As pessoas doentes não têm nem como correr”.

A delegacia explodiu em gargalhadas e a audiência foi encerrada.
Aracaju, 10/08/2020

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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