Eu quero o meu mundo de volta. Imediatamente. Como era antes, sem tirar nem por. Inteirinho. Se não for factível assim tê-lo, pode ser que, num acordo, aceite excluir alguns itens, no que, de logo, aponto para os engarrafamentos no trânsito, as filas em qualquer lugar, a demora na duplicação de rodovias, a elevação permanente dos preços de viagens aéreas, o fechamento de ruas e de rodovias. Do mais não abro mão. Quem estiver a me ler e souber onde o meu mundo se esconde, me avise, me telefone, que será bem gratificado. O meu mundo não era tão grande para passar despercebido atrás de serra, no meio de resto de floresta, agachado em canavial, ou escondido nos galhos de mangueira gigantesca. Custa a acreditar que ninguém, absolutamente ninguém, inclusive os setores de inteligência do governo, pista alguma tenha. Ademais, não havia motivo para o meu mundo me abandonar. Não tínhamos nenhum litígio, nunca discutimos, não se registrava de minha parte reclamação de qualquer espécie, nada que pudesse se erigir em motivo para a sua saída abrupta, sem aviso prévio, sem despedida, eu, de repente, a me acordar sem estar mais em meu mundo, a procurar, em vão, explicação, justificativa, palavra de consolo, me vendo, pela primeira vez na vida, apesar de tantas décadas vividas, sem colocar os pés no meu mundo, obrigado a ficar em casa, como se fosse dela prisioneiro, a usar máscaras nas raras compras em supermercados, a lavar constantemente as mãos, a não apertar a mão de seu ninguém, restrições que não cabem em nenhum bocapiú. 17

 Acho que roubaram meu mundo. Alguém se aproveitou da falta de vigilância, e, sorrateiramente, o levou, sem deixar pistas, e, sem saber a identidade do ladrão, não posso lavrar queixa perante à autoridade policial. Fico de braços cruzados. Felizmente, implorar notícias do meu mundo não figura em edito de proibições. Não vou de encontro a norma alguma. Nada me impede de usar o direito de pedir de volta a minha vida simples de antes, minha, e, sendo minha, forrada pelas leis, estou no direito de requerer seu retorno. Peço a todos que, por al, tenham visto alguém a carrega-lo pelas estradas a afora, que me comuniquem, por favor, para evitar que eu continue na cantilena de Maysa, ou seja, meu mundo caiu/ e me fez ficar assim  … – Diário de Pernambuco, 25 e 26 de abril de 2020.

Obs: Publicado no Diario de Pernambuco
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras
         

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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