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Para voltar a semear – A esperança do Brasil na retomada do trabalho de base

Entrevista de Dom Sebastião Armando à revista “Adista” (edição de 21 de Outubro do corrente), quando esteve por vinte dias na Itália, em Setembro, para atender convite de grupos italianos que celebravam 25 anos de experiência da Leitura Popular da Bíblia,  recebida mediante o CEBI (Centro de Estudos Bíblicos).  Assessorou, com colegas do Brasil, o encontro comemorativo desse Jubileu de Prata, na cidade de Verona, visitou algumas paróquias católicas romanas, reviu antigos amigos e realizou algumas palestras sobre Ecumenismo e sobre o Brasil. Acolhido como Bispo, em lugar reservado a bispos, participou de audiência com o Papa e teve oportunidade de  breve colóquio com ele. A revista “Adista” é muito próxima das Comunidades de Base italianas e dos movimentos populares, além de ter como horizonte o movimento popular internacional. A entrevista foi obra da simpática jornalista Claudia Fanti, competente conhecedora da realidade brasileira, já viveu no Brasil, fala e entende bem a língua portuguesa:

O Brasil está vivendo um dos momentos mais escuros de sua história, a partir do golpe de Estado contra a ex-presidente Dilma Rousseff. Não por acaso, há quem, não se limitando a falar de uma “democracia de baixíssima intensidade”, chegue a denunciar  a existência de uma “ditadura civil”. Escreve o conhecido teólogo da libertação Leonardo Boff que se trata exatamente disto, de um governo “sem o povo e contra o povo”, como o de Temer, com um índice de popularidade inferior a 5%, que, sem nenhum diálogo com a sociedade civil, e com a cumplicidade de um Parlamento composto de 40% de deputados e senadores acusados de corrupção, impõe medidas como a reforma trabalhista e a da Previdência Social, privatização de  bens básicos do patrimônio público, como a Eletrobrás, leis que pisam os direitos dos povos indígenas e “aquele autêntico atentado à soberania nacional que é a autorização de venda a estrangeiros de terras da Amazônia e facilita concessões que autorizam a  mineração a empresas multinacionais em vasta área da floresta”.

Segundo Roberto Malvezzi, da Comissão Pastoral da Terra, como se não bastasse essa ditadura civil composta “por 350 deputados, 60 senadores, 11 ministros do Supremo Tribunal Federal, alguns organismos empresariais e as famílias proprietárias dos grandes meios de comunicação, em constante ligação com os poderes econômicos que dominam o mundo”, já apareceram até mesmo militares para jogar uma luz sinistra sobre a situação atual do país. Grande celeuma foi levantada com a declaração do general de exército Antônio Mourão, o qual, ao discursar em uma loja maçônica de Brasília, no dia 15 de Setembro passado, ao responder a uma pergunta sobre a eventualidade de intervenção militar para acabar com a corrupção no país, teria afirmado que “ou as instituições resolvem o problema político, através da ação do Poder Judiciário, retirando da vida pública os elementos envolvidos em atos ilícitos, ou nós teremos de impô-lo”. Acrescentando, como se não bastasse, que o exército já teria “planejado otimamente” tal intervenção em caso de necessidade. E mesmo que o comandante do exército, o general Eduardo Villas Bôas, se tenha apressado a negar qualquer possibilidade de intervenção das forças armadas que não seja de acordo com os preceitos constitucionais,  não é segredo que no interior dos quarteis a situação seja bastante mais complexa: entre soldados e também entre altos oficiais do exército, de fato, a ideia do general Mourão parece estar ancorada em significativo consenso.

Nas redes sociais a popularidade do general cresceu de maneira vertiginosa. Recente sondagem de Datafolha indica que os militares gozam de confiança da população bem mais que o segmento político (40% contra apenas 3%). Em sua defesa se levantou o deputado e aspirante a candidato à presidência do Brasil, Jair Bolsonaro (do Partido Social Cristão), defensor do direito de todo fazendeiro usar o fuzil contra os sem-terra, e famoso por suas posições racistas e homofóbicas, sem contar suas palavras de elogio em relação ao coronel torturador da ditadura Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-dirigente do DOI-CODI, órgão de inteligência e repressão da ditadura militar. O general Mourão, declarou Bolsonaro, “falou como qualquer brasileiro indignado contra esse estado de putrefação  da política brasileira. Não é outra coisa que liberdade de expressão”. Parece certamente inquietante  o fato de que as sondagens de opinião atribuam a Bolsonaro o segundo lugar na preferência do eleitorado, com 18% dos votos, apenas depois de Lula. Sabemos que Lula, entretanto, como se sabe, não só foi incriminado, junto com Dilma e mais quatro ex-ministros, por associação criminosa, pela Operação Lava Jato (e mais precisamente por ter promovido, constituído, financiado e integrado, entre 2002 e 2016, uma “organização criminosa” da qual o PT teria feito parte junto com outros partidos, entre esses o PMDB e o PP), mas foi efetivamente condenado em primeiro grau  a nove anos e seis meses por corrupção, pelo presunto ocultamento de um apartamento tríplex em Guarujá, titulado à construtora OAS, que o ex-presidente teria adquirido a preço de favor, em troca de sua intervenção em benefício da construtora em negócios junto à Petrobrás.

Sobre ele, porém, continuam a apostar, além do Partido dos Trabalhadores. Também os movimentos sociais, convencidos de que Lula é vitima de perseguição político-judiciária com o objetivo de impedir por todos os meios sua candidatura às eleições presidenciais de 1918 e ainda mais convencidos de que seja ele o único com a capacidade de vencer a Direita e de recolocar o Brasil no caminho abandonado em seguida ao golpe contra a presidente Dilma Rousseff, mas desta vez para seguir uma estrada diversa daquela que levou à aliança com setores da Direita e do agronegócio, como se deu nos passados governos do PT.

É de tudo isto e de mais ainda que estivemos conversando, com o bispo emérito da Igreja Anglicana do Brasil (Diocese Anglicana do Recife-Nordeste), Sebastião Armando Gameleira Soares, durante sua visita à Itália. Ele é membro do Centro de Estudos Bíblicos (CEBI) – fundado em 1979, em plena ditadura militar, para promover, ecumenicamente, a Leitura Popular da Bíblia. Foi diretor nacional e coordenador por anos do Programa de Formação. Segue a entrevista. (Claudia Fanti)

A Necessidade de Pensar a  longo termo

Com quase trinta anos de nascimento do CEBI (Centro de Estudos Bíblicos), qual o balanço que é possível traçar?

Dom Sebastião: A grande conquista do CEBI é a de ter oferecido à Igreja (compreendida ecumenicamente) a novidade de uma Leitura Popular da Bíblia, um novo método de leitura e interpretação do texto bíblico a partir da realidade e em defesa da vida. E essa novidade tem produzido grandes efeitos em vista de criar uma nova mentalidade, fomentar uma maneira muito mais madura de ler as Escrituras e, sobretudo, a superação por parte do povo de um complexo de inferioridade diante da Bíblia e, de modo mais geral, da reflexão teológica, por meio de um confronto entre o TEXTO bíblico e a REALIDADE da vida e da própria Igreja. Penso que essa herança é extremamente preciosa.

O método seguido pelo CEBI é o do “triângulo hermenêutico”: REALIDADE, BÍBLIA, COMUNIDADE. Como se tem desenvolvido a relação entre os ângulos desse triângulo ao longo do tempo?

Dom Sebastião: Penso que estes três polos sejam realmente essenciais. Quem leva adiante a Leitura Popular da Bíblia não é uma comunidade qualquer. Mas uma comunidade que vive a luta do povo, uma comunidade em luta contra a pobreza, a humilhação, a injustiça. Trata-se de pessoas pobres (e de seus aliados(as) comprometidas com um processo de emancipação comunitária que, inevitavelmente, abre as pessoas à ação e à participação política em vista da mudança da sociedade. Só que agora estamos num momento difícil, porque o grande público envolvido nessa Leitura Popular da Bíblia vinha de todo o grande movimento das comunidades de base, que agora se acha numa situação de refluxo, causado pela profunda reviravolta que se registrou na Igreja nos últimos quarenta anos. Assim, por exemplo, as comunidades cristãs paroquiais têm perdido aquele entusiasmo que as movia em anos passados e isto representa, obviamente, menos interesse por esse método de leitura da Bíblia.

À grande geração daqueles que, não por acaso, foram chamados de Pais da Igreja afroameríndia (latinoamericana), seguiu-se uma estação de inverno eclesial, extremamente pobre de profecia. Nos últimos tempos, todavia, em seguida ao golpe parlamentar-judiciário-midiático contra a ex-presidente Dilma Rousseff, se tem observado certa posição um pouco mais corajosa da parte dos bispos brasileiros…

Dom Sebastião:  Para nós, sem dúvida, é uma surpresa, porque desde bastante tempo os bispos haviam preferido guardar silêncio. Não sei se a posição do Papa tenha alguma influência sobre essa nova atitude, o fato é que, nestes últimos meses, os bispos têm publicado  várias declarações, em conjunto ou singularmente, pondo em discussão a mudança de direção no campo econômico e político. Todavia, uma coisa é publicar um documento e outra, bem diferente, é tornar-se suporte de um processo. Por exemplo, o Sete de Setembro, o dia em que coincidem as comemorações da “independência” (!) e a celebração do Grito dos Excluídos, os bispos promoveram uma jornada de oração e jejum como momento para tomar consciência da realidade atual. No entanto, muita gente notou que, em vista de uma grande mobilização popular, teria sido muito mais eficaz  se os bispos tivessem convocado o povo a tomar parte na manifestação do Grito dos Excluídos. Não que o jejum e a oração sejam gestos equivocados, mas deveria ter havido empenho para que a oração e o jejum preparassem a gente para os desfiles de protesto  as manifestações que ocupassem as ruas. É curioso que tenha sido a própria CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil)  a criadora  do Grito dos Excluídos e, em seguida, não consiga mobilizar as paróquias e o povo cristão a ocupar as ruas do País. O Grito tem-se tornado sempre mais espaço de participação para  organizações do movimento social, mas com uma presença relativamente exígua de cristãos e católicos.

Durante os dois precedentes pontificados, se pensava que fossem as cúpulas da Igreja a sufocar os anseios de renovação e de libertação presentes no corpo eclesial. Hoje, com um papa evidentemente mais aberto, como Francisco, que, em teoria deveria liberar aquelas energias que estavam longamente reprimidas por seus predecessores, tem-se a impressão de que suas posições sejam mais avançadas do que não só as dos bispos, mas também de muitos fiéis. Aqueles estímulos em vista de mudanças, tão forte em período passado, se acham irremediavelmente perdidos ou é ainda possível despertá-los?

Dom Sebastião:  Os processos se desenvolvem em tempos muito longos. Aconteceu o Concílio Vaticano II e, em seguida, veio aquele grande momento, uma verdadeira e fértil estação, que começou com a Conferência de Medellín. Durante aquele período a Igreja se voltou intensamente para os problemas do Continente. Mas foi muito pouco tempo para dar a volta a uma história que tem visto a Igreja degradar-se a ideologia do poder. O Concílio, sem dúvida, foi um momento importante, mas deve ter um seguimento. Devemos ter paciência. Particularmente no caso das Comunidades de Base. Na verdade, desencadeou-se aquele grande movimento que viu o povo cristão organizar-se de maneira diversa e mais autônoma, com maior envolvimento político e com uma maior profundidade teológica, mas, não devemos esquecer de que se tratou de um “espaço concedido” pela liderança oficial da Igreja, “concessão” que vinha do alto. Com o passar do tempo, o clero tem recuperado sua posição tradicional de poder e, assim, tem ido retomando facilmente aqueles espaços de que, na verdade, as comunidades realmente não se tinham apropriado. Assim, o povo leigo, novamente privado daquela limitada (e controlada) “autonomia”, não tem tido a força para continuar na caminhada que havia apenas começado.

Poucas semanas atrás, fui convidado a participar de um encontro regional no Nordeste, em preparação ao encontro nacional intereclesial das Comunidades de Base, previsto para o próximo mês de Janeiro. Estavam aí representantes de todo o Nordeste, do Maranhão até a Bahia. E todos e todas apontavam o dedo contra o clericalismo que se manifesta hoje em dia, com todo o seu poder, contra uma maneira de celebrar a Liturgia que já não tem quase nada a ver com a vida do povo, contra um clero exclusivamente preocupado com questões religiosas e estranho a qualquer problemática politicamente significativa. Penso que o povo tenha conseguido caminhar por um certo tempo com a sensação de alegria e de novidade, mas no interior de um espaço que não se tornara verdadeiramente seu. Tanto assim que, quando esse espaço que lhe tinha sido “permitido”, novamente se fechou, o caminho deveu interromper-se. E o grande prestígio de que gozam hoje em dia os “movimentos carismáticos”, com todo o espaço que lhes é franqueado nos meios de comunicação, particularmente na televisão, não ajuda absolutamente o crescimento da consciência religiosa do povo.

Frequentemente se tem dito que são dois os livros por meio dos quais Deus nos fala: a Escritura e o livro da Criação. Hoje, diante das grandes contribuições que nos oferecem as ciências quanto a esse segundo livro, o da Natureza, do cosmos, alguns teólogos julgam que que se deva redimensionar fortemente a importância da Bíblia em proveito do “livro da Natureza”, criticando o Cristianismo pela dificuldade e o atraso em recolher tal desafio. Qual a sua opinião?

Dom Sebastião:  Creio que se tornará sempre mais forte a reflexão sobre a Bíblia como testemunho, necessariamente limitado, da experiência da fé do ser humano num certo momento de sua história. O que permanecerá tendo importância é compreender em que medida tal testemunho possa inspirar nossa caminhada nas circunstâncias atuais, num contexto completamente diverso. A Bíblia, finalmente, como impulso místico a escutar Deus, pondo o acento não sobre os conteúdos, mas sobre o processo de descoberta do fato que Deus nos fala a partir de nossa própria vida e da realidade do mundo.

Como se pode avaliar a sensibilidade para com os problemas do meio ambiente na população? Não é estranho, por exemplo, que em relação ao pré-sal (a grande reserva de petróleo ao longo da costa brasileira), o protesto dos movimentos sociais seja substancialmente só contra a participação das empresas estrangeiras,  em prejuízo do monopólio da Petrobrás, a empresa petrolífera estatal, e não, por exemplo, contra o aumento de emissões de gás que vão alterar o clima, em consequência da exploração dessa enorme reserva mineral?       

Dom Sebastião: As últimas edições da Campanha da Fraternidade, a grande iniciativa de solidariedade de Quaresma, promovida pela CNBB, têm posto forte acento sobre o tema da ecologia. Mas em uma sociedade em que a questão da pobreza, ou seja, da sobrevivência, do trabalho, do alimento, é ainda tão crucial, não é fácil promover a consciência da necessidade de assumir o cuidado pela Natureza. Particularmente quando a classe popular mal percebe o País como algo que lhe pertence, como vai interessar-se na defesa de seus eco-sistemas? É algo ainda muito distante. Por enquanto, estamos naquela fase de tentar convencer as pessoas de que não devem jogar o lixo nas ruas nem na praia do mar… Doutro lado, essa temática também não interessa os ricos, os quais vivem protegidos em seus condomínios fechados e auto-suficientes, vivem, na verdade, recolhidos em sua “bolha”. O próprio fato de o Brasil dispor de um território tão imenso, com uma natureza tão exuberante e pródiga, não ajuda a perceber a importância de preservar a “casa comum”. Nesse terreno, estamos apenas engatinhando.

Seria oportuno ajudar os pobres a compreender como são sobretudo eles a pagar o preço da devastação dos eco-sistemas. Pensemos, por exemplo, nas consequências de projetos devastadores, como a barragem de Belo Monte…

Dom Sebastião:  Sim, é justamente sobre essa relação que é preciso trabalhar, mas o nível de conscientização é ainda muito baixo, elementar. Nesse quadro, a Igreja é a única instituição de abrangência mais ampla a promover realmente uma reflexão sobre tais temáticas, sobretudo mediante a Campanha da Fraternidade, mas mesmo nesse terreno, da Igreja, topamos com sérios limites. No momento, como vem acontecendo há quarenta anos, em que a Igreja aparece substancialmente centrada em si mesma, é difícil suscitar interesse sobre um assunto que o grosso dos fiéis vai perceber como marginal em relação a sua fé religiosa.

A encíclica “Laudato Sì”, do Papa Francisco, não serviu para promover uma maior consciência ambiental?

Dom Sebastião:  Em setores que eu frequento tem suscitado grande entusiasmo, mas se trata de um documento que supõe um suficiente substrato cultural para poder ser compreendido e marcar as pessoas. Deve cair em terreno fértil para poder ser acolhido. E o mesmo se pode dizer também a respeito das análises de conjuntura sobre as dramáticas mudanças que temos registrado no País. O ponto que me parece claro é a necessidade de voltar ao trabalho de base, com a lúcida percepção de que deve correr muito tempo ainda até que o povo chegue a tomar consciência destes problemas e reagir com mais coragem.

Esse trabalho de base não tem sido descuidado também no terreno político? De fato, os governos do PT parecem ter renunciado a um trabalho de formação da classe trabalhadora, visando, de preferência, a uma política voltada a promover a inclusão social, através da via do mercado, a saber, o aumento do consumo da faixa popular. Não por acaso foi posto o acento sobre a forte ligação, estabelecida por Lula, com aquela parte majoritária da classe trabalhadora brasileira privada de consciência de luta de classe e da capacidade de construir, a partir de baixo, as próprias formas de organização, e muito mais interessada em superar as desigualdades, mas por meio da intervenção do Estado, não mediante uma real mobilização social…

Dom Sebastião:  É isto mesmo. E é justamente o que expressou Frei Betto quando afirmava que o governo do Partido dos Trabalhadores se preocupou em aumentar o contingente de “consumidores(as)”, mas não fez praticamente nada para fazer crescer o número de “cidadãos e cidadãs”. Uma vez conquistado o governo, o PT começou a comportar-se como qualquer partido brasileiro, apresentando-se como “salvador da pátria”. Não era necessário que o povo participasse. Foi este, por exemplo, o motivo pelo qual o trabalho de Frei Betto no governo não foi absolutamente valorizado. Ele intencionava promover um trabalho de alfabetização, conscientização e mobilização a partir da base dos municípios, mas de maneira autônoma em relação aos poderes políticos locais, habitualmente corruptos, o que significava sem interferência dos prefeitos e das câmaras municipais. Mas não lhe foi permitido e, por isso, durante o segundo ano de governo, renunciou ao cargo de assessor especial do Presidente. Apesar de a sociedade ter avançado no espaço público através de várias  instâncias formais de participação, como, por exemplo, discussão do “orçamento participativo”, conferências populares sobre temas relevantes, conselhos da cidadania em vários campos do sistema de Estado, como Saúde, Assistência Social, Criança e Adolescente, Previdência Social, parcerias entre Estado e ONGs, etc, Lula estava bem mais interessado em buscar apoio dos empresários e do Parlamento, aliás conhecido por sua absoluta falta de seriedade e honestidade.

E, então, o projeto “Fome Zero” dirigido por Frei Betto, muito mais ambicioso em seu caráter emancipador, tornou-se o programa “Bolsa Família”, de tom claramente assistencial…

Dom Sebastião:  Talvez nisto haja forte peso da proveniência social de Lula, que o povo pobre tivesse o que comer e pudesse mudar de vida. Lula não tem uma formação ideologicamente coerente, tem sensibilidade e carisma, mas teria tido necessidade de melhor formação política. Sempre tenho pensado que um governo do PT devesse ser mais ”político” que “administrativo”. É claro que um governo tem a tarefa de administrar. Mas aquele era o momento de fazer apelo à participação popular, por exemplo, explicando ao povo o que era possível fazer e o que não o era, e quais os motivos e entraves, no quadro de um amplo movimento de educação de base e conscientização. E era um momento favorável, porque Lula gozava de um consenso popular quase unânime. E o movimento das Comunidades de Base ainda não estava tão debilitado como está agora. Em vez disso, o PT se comportou, nesse aspecto da relação com o povo, como qualquer partido brasileiro tradicional sob o signo do mais puro “deixem conosco, estamos providenciando”. Um dia, num encontro de reflexão, uma freira católica romana chocou-se comigo porque eu havia dito: “Quando se escutava o presidente Fernando Henrique Cardoso, se via sua arrogância, uma pessoa que julgava saber tudo a respeito do país. Depois, ao escutar Lula, notei claramente que o conteúdo era diferente, mas a arrogância era a mesma… Dizia: “Estamos pensado, estamos fazendo, vocês devem ter paciência, chegará o momento…” Não solicitava a participação, mas apelava a aguardar que a situação melhorasse. Minha intenção não era dizer que Lula se equiparasse a Fernando Henrique, um político da elite, mas apenas indicava que o rumo político de Lula não era correto em vista de levantar-se a consciência e a participação popular.

Que pensa dos escândalos que envolveram o PT? Também nisso o PT se comportou como qualquer partido político, ou existe de fato um propósito persecutório do poder judiciário contra Lula? Ou ambas as coisas?

Dom Sebastião:  Eu creio que se o poder judiciário tivesse os elementos para condenar Lula, já o teria feito. Pois a intenção é a de destruir o PT – responsável, por ter adotado medidas em favor do povo pobre e também de ter defendido a soberania nacional – Lula já estaria na prisão há tempo. Ao mesmo tempo, não penso que o PT seja inocente. Dizem que o próprio Lula teria confessado ao ex-presidente Mujica, do Uruguai, que o teria registrado em seu diário, que no Brasil é impossível governar sem ser vítima de chantagem financeira, ou seja, sem baixar a acordos, de qualquer modo, com a corrupção. Sem dúvida, Lula para poder governar, julgou que era  preciso aliar-se com os empresários. É preciso compreender em que medida o teria feito. Eu penso que a corrupção geral, fora do PT, seja muitíssimo maior, mas penso também que o PT tenha assumido os mesmos métodos habituais dos partidos brasileiros e que a corrupção no Brasil seja endêmica, entranhada na cultura política e bem além dela.

Se Lula conseguir recandidatar-se nas eleições de 2018, o povo o elegerá?

 Dom Sebastião:  As sondagens eleitorais dizem que venceria as eleições e isso aterroriza a Direita. Seguramente não há líderes políticos de seu nível.

O senhor votaria nele de novo?

Dom Sebastião:  Na primeira vez votei com muito entusiasmo. Mas já para o segundo mandato tive de debater-me com minha consciência, mas votei de novo, sem grande entusiasmo. Com a eleição de Dilma foi a mesma coisa. Provavelmente votaria de novo por não ver alternativa. Os outros partidos de esquerda são pequenos e ainda frágeis. E o resto  é puro lixo ou quase.

Enquanto isto, o governo Temer vai conseguir  concluir seu mandato, malgrado sua baixíssima popularidade. O povo se resignou à situação?

Dom Sebastião:  Eu me pergunto sempre: como é possível que nós, o povo, não ocupemos as ruas e avenidas do país para derrubar o presidente? Como é possível que não se mostre de maneira evidente nosso descontentamento? A mobilizar-se são somente os grupos já tradicionalmente organizados: sindicatos, alguns movimentos populares como os de sem-teto e sem-terra… Mas a massa não desce às ruas. E isto só mostra o quanto ainda é frágil a organização de nosso povo.

Existe algum motivo de esperança?

Dom Sebastião:  No curto prazo, o horizonte é realmente muito escuro. É preciso pensar a longo termo. Devemos voltar a semear, a investir nos grupos de base para que se vá mudando a mentalidade. Mas é um processo longo, porque uma cultura não se transforma de hoje para amanhã. Não nos esqueçamos: nossos povos originários foram praticamente dizimados, só sobrou um “pequeno resto”; tivemos escravidão do povo negro até o final do século XIX; nossa classe média é, em grandíssima parte, alienada e consumista e até, em larga medida, mal preparada intelectualmente; os pobres ainda estão no nível de sobrevivência dia a dia… A mente das pessoas está quase completamente ocupada com a angustiante preocupação de como vamos sobreviver amanhã. Como pensar em horizonte mais amplo? Como repensar o país, ter ideais coletivos e coragem de lutar solidariamente por esses?

http://domsebastiaoarmandogameleira.com/para-voltar-a-semear-a-esperanca-do-brasil-na-retomada-do-trabalho-de-base/

Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….
É Teólogo e Biblista
Assessor do CEBI, de lideranças de Comunidades Eclesiais de Base e de Escolas de Fé e Política

Imagem do autor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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