Eduardo Hoornaert 1 de outubro de 2020

O que hoje acontece com a política no Brasil não é novidade. É a continuação de uma longa série de farsas revestidas de seriedade, que a história registra ao longo dos tempos. Como interpretar de forma diferente a recente declaração do Presidente do Senado, Renan Calheiros, quando diz que no final de agosto os exaustivos trabalhos do julgamento final do impeachment de Dilma devem estar concluídos? Que trabalhos hercúleos são esses, para exigir tanto tempo e tanto empenho? Os senadores estão trabalhando tanto que não têm tempo para rir, de tanto se aprofundar em pilhas de documentos. Isso me lembra uma anotação no Diário do escritor americano Henry Miller, em 1938. Após visitar Adolfo Hitler, ele escreveu: Aqui as coisas andam mal. O homem não sabe rir. Não, neste momento senadores e senadoras não riem, pois não é brincadeira revestir todo esse calhamaço de roupa séria. A cada momento se arrisca soltar uma palavra errada e fazer com que apareça, num rasgo da cortina, a cara farsante de todo o empreendimento. Uns dias atrás, Eduardo Suplicy fez em público um apelo à sua ex-mulher Marta, atualmente senadora, dizendo: ‘Marta, você sabe que é golpe. Então diga o que sabe’. Mas Marta não diz o que sabe, pois ela pensa no futuro. Como reza o provérbio espanhol: El dia que diga lo que pienso, me borran del mapa. Mesmo o ex-senador Pedro Simon, homem esclarecido, numa entrevista concedida no dia 13 de abril deste ano, seis dias antes da sessão do impeachment na Câmara, pareceu não acreditar que tudo daria em farsa, pois deu a impressão de ainda acreditar que fosse possível que empreiteiros assumissem posições independentes, ao citar o nome do empreiteiro Antônio Ermírio de Moraes. Como isso fica hoje, quando assistimos (pelo menos os/as que assistem à TV) a efusivos abraços entre Michel Temer e empreiteiros?

Uma resposta válida à farsa consiste na paródia e na ironia, como mostram escritores particularmente lúcidos. Se não for por um agudo senso de um mundo às avessas, totalmente injusto, como teria nascido Dom Quixote de Cervantes, o Idiota de Dostoievski, o Rei Lear de Shakespeare? Mas parece que nossos irônicos sumiram do mapa. Onde está Millôr Fernandes, o ‘Amigo da Onça’ da saudosa Revista ‘Realidade’, o ‘Professor Raimundo’ de Chico Anísio? Onde está Macunaíma, o ‘herói sem caráter’? Hoje ficamos condenados a ver a pantomima de Tiririca que troca a honrada roupa de cômico pelo paletó de deputado farsante. Parece que o mundo está contaminado pela suprema seriedade de Bonner no Jornal Nacional, que é capaz de dizer as maiores barbaridades com a cara mais lisa do mundo. Certo, Bonner é a cara da Globo. Mas não é só a Globo, praticamente todos os canais de TV nos condenam a ver e ouvir sempre as mesmas coisas, ditas com uma seriedade que assusta.

Se tudo isso é farsa para uns poucos, é tragédia para muitos. Tragédia para os desempregados, as mães que vivem com crianças em bairros populares, os pais de família que procuram dar do melhor a seus filhos. Mas parece que estamos diante de um regime que ‘joga duro’, ‘não brinca em serviço’ e ensina ao povo que é preciso sofrer (o termo politicamente certo é ‘superar a crise’)? O rosto de Michel Temer mostra que a seriedade é a marca registrada desse tipo de regime. Parece que esse rosto fala e diz: ‘Saiba manter a postura. Você não vê que são os empreendedores que fazem o Brasil, não os malandros? ’. Então é preciso fazer como o Presidente Temer: exibir sempre um controle emocional, calcular bem o que se diz e principalmente fugir da espontaneidade, do riso e da brincadeira, que são atributos de descendentes de escravos. (03.07.16)

Obs: O autor : “Nasci em Bruges, na Bélgica, no ano de 1930. Estudei línguas clássicas na universidade de Lovaina e teologia em preparação ao sacerdócio católico, entre 1951 e 1955. Em 1958 viajei ao Brasil (João Pessoa). Fui professor catedrático em história da igreja, sucessivamente nos institutos de teologia de João Pessoa (1958-1964), Recife (1964-1982), e Fortaleza (1982- 1991). Sou membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA), fui coordenador para o Brasil entre 1973 e 1978, responsável pelo projeto de edições populares entre 1978 e 1992, e entre 1993 e 2002 responsável pelo projeto “História do Cristianismo”. Entre 1994 e 1997 fui pesquisador visitante no mestrado de história da universidade federal da Bahia. Durante esses anos todos administrei cursos e proferi conferências em torno de temas como: história do cristianismo; história da igreja na América Latina e no Brasil; religião do povo. Atualmente estou estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.”

Explicação do painel(foto)

O autor é o primeiro à direita.

“O painel do fundo, é um quadro desenhado pela Irmã Adélia Carvalho, salesiana (Filha de Maria Auxiliadora) de Recife e ‘artista da caminhada’, que tem muitos trabalhos na linha de uma Igreja libertadora e colabora em diversos programas de conscientização pela arte.
O tema do quadro pode ser descrito assim: ‘a proposta cristã na confusão do mundo em que vivemos’.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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