A Campanha da Fraternidade vem despertando um novo interesse pela Bíblia. O tema do tráfico humano já tinha surpreendido, pela amplitude do fenômeno e pela assiduidade com que ele se verifica no mundo de hoje, apesar de todas as providências tomadas para garantir os direitos humanos a todas as pessoas.
Agora, buscando as referências bíblicas para o assunto, eis que nos deparamos com outra surpresa. O fenômeno do tráfico humano é corriqueiro na Bíblia.
O caso mais emblemático é a história constrangedora dos filhos do Patriarca Jacó. O mais novo deles, José, foi vendido por seus irmãos por vinte moedas de prata. Um caso típico de tráfico humano, e praticado entre irmãos.
Verdade é que a história teve um “final feliz”, com o sucesso obtido por José no Egito, e pelo reencontro com seu velho pai. Mas o episódio não deixa de ser colocado nas origens do assentamento do povo de Israel no Egito, onde acabaria caindo na escravidão, fruto indesejado da venda de José, mesmo que fruto bastardo, amadurecido lentamente.
O fato é que o tráfico humano manchou o povo de Israel desde o seu nascedouro, na época dos seus patriarcas.
Aí se coloca uma questão importante, que precisa ser bem dirimida. Acontece que a Bíblia, ao longo de todo o Antigo Testamento, está repleta de episódios violentos, de intrigas, de violências, de guerras, de assassinatos, chegando até a situações de genocídios, com a matança de pequenas populações que residiam na antiga Palestina, para ceder lugar aos israelitas, que acabaram se impondo e dominando toda a região. E tudo isto, interpretado como um sinal de bênção de Deus em favor do seu povo escolhido.
Dependendo de como é olhado, o Antigo Testamento pode ser visto como um relato de violências, justificadas em nome de uma crença, colocada a serviço da pretensa superioridade de um povo sobre os outros.
Esta visão levou muita gente, com sensibilidade humana refinada, a descrerem da Bíblia, relegando-a a meros relatos tribais, sem nenhuma relevância humana.
Que dizer disto, e como recuperar o valor transcendente da Sagrada Escritura?
Em primeiro lugar, precisamos nos dar conta que a Bíblia não se exime de sua dimensão humana. Ao contrário, ela a assume propositalmente, para mostrar que ela se identifica com o lento caminhar da humanidade, dentro do qual vai emergindo cada vez mais claramente o desígnio de Deus, “de formar um povo que o conheça na verdade, e o sirva na santidade”. É esta humanidade, carregada de ambiguidades e de perversidades, que Deus se propôs redimir e salvar “pela força do seu braço”.
Em segundo lugar, é preciso dar-nos conta do valor simbólico dos fatos relatados pela Bíblia. Quando, por exemplo, Deus prometeu a Abraão uma numerosa descendência, e pediu que saísse de sua terra, e se dirigisse para a terra que Deus iria lhe mostrar, a Bíblia não diz onde estaria esta terra. Pois na verdade ela não estava em lugar nenhum. A nova terra prometida a Abraão, não era um território determinado. Era o símbolo da bênção que Deus queria conceder a todas as famílias humanas. Esta era a “terra prometida”.
Se a promessa de uma nova terra não recuperar o valor simbólico que lhe foi dado por Deus, permanecem os equívocos das disputas por território, como infelizmente ainda se verifica hoje.
Como Abraão, e como São Pedro, nós também “esperamos novos céus e nova terra”, não na Criméia, nem em Israel. Mas na prática da justiça e na vivência da fraternidade. 28.03.14
Obs: O autor é Bispo Emérito de Jales.