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Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, escreveu certa vez que binômio de Newton é tão belo como a Vênus de Milo. O que há é pouca gente para dar conta disso”. Por ter colocado esses dois aspectos num mesmo plano estético, podemos dizer que a intenção dele era enfatizar a importância da matemática, atribuindo à Álgebra o mesmo nível de beleza dispensado à arte e igual necessidade humana.

Assim, desde a citação desse genial poeta português, publicada em 1944, o mundo assistiu não somente ao final da Segunda Guerra, como em poucos anos se mostrou maravilhado com o progresso material, advindo após o conflito, e se aferrou às equações e avanços tecnológicos como sendo as novas e definitivas maravilhas para a humanidade.

Embora a Vênus de Milo ainda continue a ser admirada pelo seu esplendor, podemos observar que o segmento artístico foi relegado a um segundo plano, ficando em evidência nos dias de hoje tão somente a tecnologia criada, decorrente de cálculos matemáticos. Dia após dia, a arte tende a ocupar, equivocadamente, um degrau menor. Devido à sua subjetividade, quando uma obra não pode gerar lucro imediato, é posta em um patamar de algo supérfluo.

A poesia, em particular, muitas vezes tem merecido um tratamento próximo da banalidade. Podemos notar que o comércio não se interessa muito por poesia, já que seus “ingredientes” não passam por qualquer tipo de processamento artificial. Seus recursos sempre se encontram em estado natural. Portanto, o poeta é, acima de tudo, um extrativista!

Em Literatura, o uso de um software só consegue, quando muito, indicar rimas, mas não a semântica e todos os sentimentos contidos nas palavras. A máquina não consegue fazer poesia. Nenhum aplicativo é capaz de expressar a intensidade dos versos de Camões, ou as dores que Fernando Pessoa “deveras sente”, nem “todo o sentimento do mundo”, de Drummond, ou colorir de amarelo os ipês de Rubem Alves, descobrir as “insignificâncias” no quintal de Manoel de Barros, ou, ainda, compor os poemas que Mia Couto fez “para ti”.

O poeta é um afortunado, porque é atemporal e pode, por exemplo, visitar o futuro. O poeta não prevê; apenas lança seu olhar peculiar, muitas vezes entremeado de crítica. E se quando o futuro vier mostrar-se diferente ao descrito, a sua poesia teve a dádiva de vislumbrar uma variante, uma alternativa romântica àquilo que se instalou.

Na verdade a poesia não está morrendo; apenas está adormecida, ou encoberta. Ela foi substituída, esperamos que momentaneamente, pela necessidade patológica da urgência. A poesia depende, entre outras coisas, de tempo para contemplação do que é belo. O mundo tecnocrático somente se atém pontualmente ao que é rápido e lucrativo.

O aguçar da percepção foi substituída pela necessidade frenética de julgamento. Julgar, principalmente, se isso convém ou não, mas pela ótica das imposições sociais e interesses econômicos.

Desse modo, enquanto o binômio de Newton trata daquilo que é “reto e quadrado” e estritamente matemático, poderíamos dizer, metaforicamente, que a Vênus de Milo circunda pelas redondezas daquilo que é belo e tenta revelar os contornos do que é puramente estético. Entendo que ambos são essenciais e não se excluem; pelo contrário, se completam.

Lamento que não tenhamos mais tempo para observar e nos emocionar! Foram criados conceitos sobre uma tal “inteligência emocional” e, assim, busca-se racionalizar até mesmo o sentir. Estamos caminhando a passos largos para a inércia de sentimentos.

Somente passando pelos batentes da contemplação daquilo que nos cerca é que será possível abrir a porta do encantamento, para, então, ultrapassar as fronteiras do êxtase contido no universo literário, em especial no cenário poético.

– OBSERVAÇÃO:

Crônica também publicada na “Revista Vicejar” em 01.09.2020:

LINK: http://revistavicejar.blogspot.com/

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