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No início de setembro, as águas começam a refluir lentamente nos rios e lagos da Amazônia. As águas do Tapajós, um dos grandes afluentes do Amazonas, vão se afastando aos poucos das praias, deixando as areias das margens cada vez mais descobertas. Em outubro e novembro, normalmente, o rio chegará ao seu nível mais baixo, deixando largas margens de areia ou lama seca, dependendo do local. Eu conheço este rio desde a minha mais tenra infância (5 anos de idade), em frente à cidade de Santarém. Evidentemente, quando eu tinha esta idade, toda a frente da cidade era marcada pelas praias de areias brancas e finas, lavadas pelas águas (então) translúcidas do Tapajós. Bem diferente do que é a orla da cidade hoje e as águas poluídas e cheias de lixo de hoje.

A propósito, é desta realidade brutal do lixo que quero falar. Ontem, ao passar pela margem do rio, vi sinais de óleo derramado na água em alguns pontos onde barcos e canoas ficam atracados no cais da orla da cidade. As manchas em ondas coloridas como um bruto arco-íris horizontal, ondulantes, exalavam aquele odor típico de óleo lubrificante que escapa dos motores e flutua sobre a água. Hoje, com a água um pouco mais baixa em algumas áreas da praia, já se podia ver todo tipo de plásticos, de garrafões azuis de bebedouros quebrados, abandonados sobre a areia, sacos plásticos, garrafas pets de água mineral ou de refrigerantes, espalhadas por toda a parte, panos, etc. As águas vão refluindo e vão deixando apenas aqueles resíduos sólidos mais pesados, que não foram arrastados pela correnteza…  Coincidentemente, à noite deste mesmo dia, ao abrir um portal de notícias locais, li que pesquisadores encontraram uma quantidade muito grande de micropartículas de plástico em peixes dos rios da Amazônia.  Se se considerar a quantidade de lixo despejada pela população em todos os rios da região, desde as pequenas vilas e cidades ribeirinhas até às grandes metrópoles, como Manaus e Belém, pode-se pensar nas proporções do problema. Uma ocasião, visitando casas em uma área de palafitas, no bairro São Jorge, em Manaus, sentindo aquele odor de mofo e de poluição, olhei para baixo dos soalhos da casa que visitava e perguntei ao morador por que razão jogavam o lixo embaixo da casa. Ele me disse, com muita naturalidade, que o local onde os caminhões da coleta de lixo passavam era muito longe da casa (talvez uns duzentos metros) e que quando as águas da enchente chegassem, levariam todo o lixo. Esqueci de perguntar ao senhor da casa para onde o lixo seria levado pelas águas! O mesmo Igarapé do São Raimundo, que passava em frente à nossa casa, em Manaus, ficava todos os anos, na época da enchente, com uma camada flutuante de lixo, sobretudo plásticos, de modo que ficava difícil de ver a água. A superfície ficava com uma camada densa de lixo e a prefeitura mandava, todos os anos, uma balsa que se atravessava no meio do igarapé, recolhendo com redes o lixo e empilhando-o em verdadeiras pirâmides de resíduos que depois eram levados por caçambas não sei para onde. Certamente, grande parte daquele lixo ia para o Rio Negro e depois para o Amazonas, e depois…

Em julho de 2008, fui para Tefé, a cerca de 600 quilômetros a oeste de Manaus, para um encontro de formação com as Irmãs Franciscanas Missionárias de Maria. Elas quiseram me proporcionar um passeio pelo Rio Tefé, até próximo à foz do rio, onde há uma antiga missão dos Padres Espiritanos e hoje é uma casa de retiro e encontros.  Descemos o rio em uma pequena lancha. As águas estavam baixando naquela época. Chamou-me a atenção a grande quantidade de lixo pendurado nos galhos das árvores, às margens do rio. Um espetáculo grotesco em que parecia que as folhas das árvores tinham sido substituídas por uma variedade enorme de pedaços de plástico, de tecidos, de todo tipo de lixo, que as águas devem ter arrastado da cidade para o rio Solimões, deixando engatados nas galhadas das árvores aqueles que se prenderam e ficaram, depois que o nível das águas baixou. Aquela imagem impressionou-me tanto que nunca consegui esquecer…   Tanto lixo preso à vegetação das margens do rio, ali, tão distante dos grandes centros urbanos.

Uma ocasião, fiz uma viagem com um grupo de indígenas do povo mundurucu, subindo o Rio Tapajós até o Rio Cururu. Foi uma viagem de dois dias subindo o rio, numa lancha em que pelo menos dezessete pessoas se apertavam para ocupar o espaço estreito da embarcação. Chamou-me a atenção o fato de que os indígenas não tivessem nenhuma consciência ecológica. Ou já uma relação com o rio e as águas sem nenhum afeto ou amor: todas as embalagens de plástico das coisas utilizadas na viagem foram jogadas no grande cesto de lixo: o rio. Inclusive o frasco de bronzeador que uma senhora idosa ia utilizando para passar em seus braços, rosto, etc. Ao secar o seu conteúdo, o frasco foi arremessado naturalmente ao rio…  Nem mesmo os povos indígenas, que são considerados como os guardiães da floresta e principais aliados da defesa do meio ambiente têm atitudes diferentes em relação às outras pessoas da “civilização urbana”.

Em meados da década de 1990, mais precisamente em 1994, passei uns dias no Rio Grande do Sul, visitando os confrades franciscanos, conhecendo um pouco daquele Estado. Surpreendeu-me ver, às margens das estradas, todo tipo de lixo lançado de dentro dos carros: plásticos, garrafas pets, latinhas de bebidas consumidas e lançadas às margens da estrada…  A in-civilização, a miséria da falta de educação é geral no povo brasileiro, do Monte Roraima ao Chuí.  Infelizmente, não é só um problema do povo brasileiro! Os oceanos poluídos com tantos resíduos, sobretudo plásticos, que formam verdadeiras ilhas-continentes de lixo flutuante revelam que esta é uma miséria da humanidade inteira.

O lixo, uma vez produzido e deixado em qualquer lugar ou jogado num espaço público torna-se um problema de todos. Uma vez descartado em espaço público, seja lá aonde for, o lixo não é mais meu, mas se torna um problema da sociedade toda.  O lixo revela a personalidade e o caráter das pessoas. Ouso dizer que o modo como lidamos com o lixo que produzimos revela quem somos nós, o nosso caráter, nossa personalidade. Não é somente uma questão de educação nem de padrão social de vida. Basta ir a uma praia qualquer do litoral brasileiro depois de um final de semana de verão: a paisagem em geral é deprimente. A quantidade de lixo abandonado para ler levado pelas marés… E isso mesmo quando existem contêineres e tambores destinados ao lixo, espalhados por toda a parte. Somos uma civilização do lixo e da sujeira e precisamos de uma revolução cultural para mudar nossas atitudes e nosso jeito de lidar responsavelmente com os dejetos que produzimos.

Escandalizo-me com qualquer copo descartável, garrafa pet, saco plástico, latinha etc. jogados em qualquer lugar. Em nossas cidades, é muito frequente encontrarmos lixo espalhado pelo chão bem próximo a algum cesto ou contêiner organizado para a coleta racional e educada destes resíduos sólidos produzidos pela nossa civilização do lixo.

Esta é uma das questões do nosso tempo que me deixa com uma sensação de impotência e descrença no futuro da humanidade. Será que temos jeito? Ou somos mesmo um povo que não deu certo? Não varrer o lixo para baixo do tapete ou, em proporções maiores, para o subsolo nos aterros sanitários, misturando tudo, inclusive os elementos contaminantes e os metais pesados e outros elementos químicos que vão acabar nos lençóis subterrâneos de água? O que vamos deixar para as futuras gerações? Deveríamos trabalhar mais em nós o senso de responsabilidade com o futuro da humanidade. Como seremos lembrados? Será que isso importa? 03/09/2020

Obs: Imagens do autor.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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