Entre a compra e a leitura, muitas vezes, há intervalo até de décadas. Mas o livro é paciente.  Fincado na estante, sabe esperar. O seu dia chega, na certeza de, mais cedo ou mais tarde, ser escolhido, e, enfim, o momento, esperado e sagrado da leitura, a simbolizar a posse, primeira e inesquecível, o momento exato em que de suas páginas se extraí um bocado de cenas e condutas, atos e fatos, histórias secundadas por histórias, e se o leitor for como eu deixará sua impressão no final. Refiro-me ao livro que carrega um romance. Ou um punhado de contos. Estamos navegando no campo da ficção. E, por fim, ao que está prenhe de crônicas.

O livro é, assim, o amante fiel. Não abre a boca para qualquer reclamação. Está escrito nas estrelas que, um dia, será lido, página por página. Por isso, calado espera, envelhecendo as páginas sem se encher de rugas, o texto, como um mar imenso se mantém intacto, nem vazando,  nem enchendo, a desafiar todas as embarcações ancoradas no porto, consciente de seu valor, parido e criado para servir a quem o adquire, escravo que não nasce pregado em nenhuma corrente, livre como o vento, que só se realiza quando lido, porque é para ser lido que existe.

O livro deveria ser um substantivo feminino -, livra, – portanto, para ser mais buscado e querido, e, assim, dengosa, feminina, pronta para galgar o colo e ser feita mulher. Mas, o livro é masculino, embora brando, sem se incomodar de ser trocado por um jornal, porque este é o namorado frívolo, de duração curta, sem direito de crescer e envelhecer, porque, logo, logo, estará na lata do lixo, sepultura do esquecimento, enquanto o livro, ah, o livro fica, acomodado na estante, ao lado de outros, escancarando as páginas nas mãos de quem gosta do riscado.

O livro apresenta a característica da passividade, sendo soberbo pelo que contém, cantado por poetas – o livro, caindo na alma, é germe que faz a palma, é água que faz o mar, foi assim que Castro Alves poetou? -, se mantém em forma apesar do desafio eletrônico. Como torcedor do Flamengo, invoco um de seus hinos, para aclamar que eu teria um desgosto profundo se faltasse o livro no mundo. E, então, o meu anjo de guarda me provoca, lembrando que, se é assim, porque eu não reúno esses textos em um livro. Imediatamente, respondo: deixe a crise passar – Diário de Pernambuco, 11 e 12 de abril de 2020.

Obs: Publicado no Diario de Pernambuco
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras
            

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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