foto: Varal dos Passarinhos

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Já faz um tempo que a educadora e terapeuta cultural Maria Inez do Espírito Santo vem adentrando as lendas e mitos de diferentes povos indígenas. O encantamento proporcionado pelos modos de transmissão e preservação dessas histórias ao longo do tempo, em sua maioria através da oralidade, resultou na escrita do livro “De parcerias e trapaças: histórias de ontem, para sempre”.

Figuras importantes e recorrentes no imaginário de povos tradicionais marcam presença na obra ilustrada de maneira brilhante e única por Anabella López. Em De parcerias e trapaças, nos deparamos com as disputas desajeitadas entre a onça e o veado, as artimanhas da aranha e a sina do quibungo e as competições capciosas entre o jabuti e a raposa.

Não é por acaso que a autora, em seu trabalho, dedica tanta atenção a esses contos e tradições: sua infância foi repleta de narrativas fantasiosas e contações entusiásticas. Hoje, Maria Inez é grande incentivadora da arte de narrar e defende a importância da tradição oral como instrumento de resistência. A escritora aproveita a deixa do livro para convidar a todos os leitores/ouvintes a se tornarem também contadores… “E, assim, cada história poderá ganhar uma nova forma, segundo sua própria interpretação e desejo de compartilha-la”.

O Blog da Aletria entrevistou essa educadora apaixonada e ela narrou pra gente um pouquinho dos contos de sua própria história.

Vem com a gente!

Maria Inez, contações de histórias são sempre deliciosas sejam durante as aulas, momentos de recreação, na casa da vovó, ou antes de dormir. Mas esse costume foi herdado de outros tempos e lugares, assim como a maioria das histórias que ouvimos e contamos. Em sua opinião, qual a importância da tradição oral hoje?

A tradição oral tem hoje, mais que nunca, o papel de instrumento de resistência, de salvaguarda da relação tempo/humanidade. Num mundo de aceleração contínua e irrefreável, em que o excesso de informações superficiais e manipuladas nos levam a estado de confusão e alienação crescentes, ouvir e contar histórias nos permite reconectar com estruturas culturais fundamentais, capazes de promover e alimentar nossa saúde psíquica e emocional.

Ilustração do livro “De parcerias e trapaças”.

Quando era criança você ouviu muitas histórias contadas pelos mais velhos? Tem alguma fábula, mito ou lenda que te marcou mais? Conta um pouquinho pra gente!

Na infância, eu e meus irmãos tivemos uma mãe-auxiliar que nos lia, com graça e estilo muito próprio, as “Histórias de Tia Anastácia” do Monteiro Lobato. Sentados a seu redor, na cama, nos deliciávamos com os contos e com sua forma animada de narrá-los. Ouvíamos, também, à noite já deitados para dormir, histórias tradicionais gravadas em discos de muito boa qualidade.

Depois, como aluna do Colégio Notre Dame de Sion, tive a sorte de, entre 7 e 8 anos, cursando a classe equivalente ao terceiro ano do ensino fundamental de hoje, ter uma mestra de classe – Soeur Cecília – de uma postura didática muito avançada para aqueles anos 1950. Líamos e fazíamos a leitura interpretativa dos Evangelhos, buscando o sentido simbólico dos textos. Depois representávamos as histórias em sala, como recurso de ampliação de nossa capacidade de compreensão, sem a preocupação de mostrar o trabalho para o público ou mesmo exibi-lo para os pais. Foi uma experiência inesquecível!

Toda vez que recontam uma história, é certo que ela não permanece a mesma. O narrador acaba acrescentando traços pessoais e características do contexto histórico em que ele vive. De que forma isso contribui para a tradição da oralidade?

“Quem conta um conto, aumenta um ponto”, diz o dito popular, com toda razão. Um bom contador de histórias é um intérprete e, como tal, lança mão de seu estilo próprio ao repetir a trama como a sentiu, acrescentando muitas vezes novos tons que, se respeitarem a essência do conto, só farão despertar mais o interesse do ouvinte. O jeito peculiar de cada contador pode – e deve! – ser um veículo de aproximação entre a história e o público ouvinte. O mesmo vale para o escritor e a ponte que estabelece com o leitor, através de um texto que reproduz.

Clarissa Pínkola Éstes, escritora e psicanalista junguiana, que passou a maior parte de sua vida coletando histórias universais, nos ensina que é preciso respeitar aquilo que ela denomina de “Esqueleto da história”. Dessa forma, penso que a estrutura básica do conto não pode ser alterada, mas que ela se projeta melhor quando é verdadeiramente sentida pelo transmissor e compartilhada a seu próprio modo.

Ilustração do livro “De parcerias e trapaças”.

No livro “De parcerias e trapaças”, o leitor é convidado a trocar de papel e se tornar o narrador. Você acredita que qualquer um pode se tornar um contador de histórias?

Estou convencida de que sim. Minha experiência como educadora, como psicoterapeuta e como coordenadora de grupos de leitura e reflexão me deram oportunidades de ver pessoas praticamente bloqueadas, balbuciantes e tímidas, se tornarem pouco a pouco narradores bastante interessantes.

Sempre estimulo meu ouvinte ou leitor a passar adiante as histórias que lhe conto, quase mesmo como missão: dar à narrativa novas vias e possibilidades de expansão através de sua voz.

Desafio Calango

E a escritora Maria Inez do Espírito Santo também aceitou o nosso Desafio Calango. Esse divertido nome a gente emprestou da cantoria popular de origem mineira, que vem lá da Zona da Mata, em que os contendedores se desafiam no improviso. Cantando quadras e sextilhas em compasso binário sobre o dia a dia da vida no interior, é derrotado o competidor que esgotar primeiro suas rimas. No nosso Desafio Calango, lançamos uma série de perguntas para os nossos convidados e os provocamos a contar um pouco de suas próprias histórias. No final, você leitor é quem acaba desafiado a embarcar em uma viagem pelas obras preferidas dos entrevistados, os locais onde produzem e as aventuras em que mergulham na hora de criar.

Para os destemidos que se aventuram pelas suas histórias, quais surpresas eles podem encontrar?

Em meu primeiro livro “Enquanto papai não volta”, que conta a história de um menino que sofre pela ausência do pai, o convite era sentir e aprofundar em cada um a experiência da falta, que é inevitável em toda vida humana, mas que nos leva a crescer e descobrir o mundo.

Quando comecei a escrever e recontar os mitos indígenas de nossos povos ancestrais, passei a oferecer a meus leitores e ouvintes a oportunidade de um mergulho muito mais profundo, no mundo do Inconsciente. Por essas sendas misteriosas, que os mitos nos apontam, naturalmente, podemos entrar em contato com nossa complexidade, com nossa dualidade, por exemplo, e encontrar a possibilidade de integração dos opostos, através dessa vivência. Tudo isso sem teorizar, sem racionalizar: apenas lendo ou ouvindo histórias.

Maria Inez e Anabella López.

Qual o livro mais fantástico pelo qual você se aventurou? Quais aventuras você encontrou por lá?

Como leitora e ouvinte, encantam-me os mitos de origem. Tanto em “A fala sagrada” de Pierre Clastres, como em “Gênesis”, de Barbosa Lima, no mito “Maira”, contado por Darcy Ribeiro ou no mito de origem dos índios do Alto Rio Negro, vivo uma mesma emoção, tão intensa e impactante, que quase me retém a respiração, por mais vezes que os releia.

Também a Poesia de Fernando Pessoa, certos textos de Freud e a singela sabedoria de determinados livros ditos infantis, me convidam a aventuras incríveis, nesse mundo misterioso, de meu sentir, de meu Ser.

Em quais peripécias você se envolve na hora de criar?

Gosto de escrever desde que aprendi as primeiras letras. Gosto da caligrafia, das letras, das palavras, de seus múltiplos sentidos e das combinações entre elas. Não acredito em técnicas. Mas para mim é preciso seguir certo ritual. O silêncio e a solidão são condições indispensáveis. Não consigo escrever na companhia de outras pessoas, nem com ruídos fortes.

Para escrever à mão, o que me é bem prazeroso, dependo de determinado tipo de papel mais encorpado e preferencialmente não tão alvo, de certo tipo de lápis ou caneta… É um tanto complicado conseguir esse encontro de forma suficientemente harmoniosa. Em minha trajetória, pouco usei máquina de escrever para criação de textos e, uma vez tendo aceitado o computador como novo instrumento de trabalho, procuro pensar mais nas facilidades que ele oferece que nos riscos. Por exemplo, o de perder todo um texto subitamente e não conseguir localizá-lo nesse buraco negro que certamente existe nesse universo da Informática, ainda tão misterioso para mim.

Caminhar, comer e beber apenas o necessário e ouvir boa música nos intervalos, certamente são facilitadores do meu encontro com a “musa”. Mas a inspiração maior é sempre o amor, uma espécie de amor pela vida, pelo qual sou tomada repentina e apaixonadamente e que me leva a um entusiasmo incontrolável. Depois tudo isso se esvai e é preciso respeitar com humildade os intervalos.

Quem é a criança provocadora que te instiga a encarar o desafio de escrever um novo livro?

Vive em mim uma criança de olhos brilhantes, que encara o mundo de frente.

Ao mesmo tempo, quem me alimenta a alma é uma pequena Inez, com seus afetos mais singelos.

Como é o lugar onde você cria? Está mais para uma floresta encantada, uma mansão mal assombrada, um grande sertão, ou a Terra do Nunca? 

Não há um lugar definido. Mas com certeza está mais para uma casa de campo, como a do Sítio Retiro, que foi meu lar durante muitos anos.

Obs: Imagens enviadas pela autora ( que ilustram o seu livro)

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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