Bernadete Bruto 1 de setembro de 2020

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XI

Recife, Rua Afonso Celso, 182- AP.902 – Tamarineira, 19 de abril de 2020.

Tudo muito confuso. Coço a cabeça. Papai e mamãe dentro de casa o tempo todo. Agora, muito mais nervosos. A mamãe com uma mania de lavar as mãos, lavar a casa, esfregar eu e meu irmãozinho tempo no banho. Muitos banhos agora! Minha mão tá igual a da vovó, cheia de listinhas…onde foi parar a vovó? Agora só vejo pelo celular e é chato. Não pode brincar comigo. Ah, não quero falar, agora estou jogando meu joguinho. (agora, eles me deixam usar esse joguinho por muito tempo….)

Algo muito estranho está acontecendo. A porta da casa não se abre. E quando se abre parece que o lobo mau chegou. Todos sentem medo. Pegam as coisas, lavam, passam produtos, mandam a gente se afastar… antes  nós ajudávamos… Não vou mais para a escola. Mas sobre isso tá até bom. Não tenho hora para dormir e nem para acordar. Meus brinquedos podem ficar espalhados pela casa.  Estaria tudo tão bom se mamãe não estivesse tão nervosa….papai briga com ela, pede para se acalmar, mas não sai da frente do computador…e depois não quer que usemos o tablet! Não compreendo…

Não sei por que aconteceu isso tudo. A TV fala de uma gripe…oxe…espirrar um pouquinho mata? Todo mundo vai morrer. Não vou ver mais vovó… fomos expulsos da sala…é assim durante a semana. Eles ficam mais nervosos na frente de um computador eu não vejo esse chefe que eles falam. A noite eles ficam mais tranquilos, chegam a brincar com a gente e como é bom dormir quentinha abraçado aos dois, com meu irmãozinho…

Penso meu  mundo mudou. Posso fazer agora tudo que era proibido, mas não posso por nem um dedinho para fora de casa…hoje na varanda vi uma borboleta amarela. Estava pousada naquela florzinha que mamãe cuida com carinho…ela, quando me viu, passou pela tela e voou em direção ao céu. Minha mãe fala de inferno o tempo todo. Ela não parou para ver a borboleta amarela pousada na sua flor predileta.. Vou pintar no meu caderno de desenho, já bem usado com muitos desenhos que mamãe diz que estão lindos. Vou mostrar para ela como é viver no céu. Vou mostrar hoje à noite, quando tudo se acalmar e nossos corpos falarem de coração a coração através daquela coisa que vovó me contou quando me abraçava. Ela me dizia que isso é AMOR.

                                                                       ***

XII

Recife, Rua Afonso Celso, 182- AP.902 – Tamarineira, 20 de abril de 2020.

Aquela vozinha antipática resolveu se manifestar com mais força durante o período que me encerrei em casa. Não me recordo quando efetivamente ela entrou em minha vida… Recordo de tempos de maior liberdade correndo na terra entre o jardim e o quintal das casas. Ainda vejo minha criança ligeira e curiosa, saltitando daqui para lá. A vozinha se existisse na época, devia ser lerda, pois não alcançava a menina.

O que sei é que desde que se isolou, aquela voz se arvorou de ser sua dona com mais força. Se antes ouvia uma opinião aqui e ali, muitas das vezes repreensiva, agora a voz marechal-de-campo não largava de meu pé! Dormia comigo tagarelando na sua cabeça. Até recitar o poema que escolhi  para meu isolamento, a danada repetia enquanto tentava dormir…Durante o dia, Nossa Senhora! Era eu olhar para algum lugar da casa e ela me aprontar a sujeira, a poeira ou algum afazer. E olha que conseguia somente me falando das obrigações…

Como ela está muito dona da situação, me recordei, também dos tempos que ela cala depois de pular como uma macaca louca…ela que me aguarde….estou bolando o plano meticulosamente . Tem que ser em surdina para ela não me sabotar dizendo que não vai dar certo. A fonte está ligada na varanda, recordado seus tempos de longas caminhadas na beira do mar, lugar que aquela voz sumia… tenho para mim que seja uma preguiçosa essa vozinha chata. Pego a vareta de incenso me dirijo à varanda, enquanto ela fica me perguntando o que estou fazendo, que bobagem é essa de sentar e ficar parada com tanta coisa para fazer. Enlouqueceu de vez. Sorrio me sentando confortavelmente e escuto a paz da imensidão do mar no fundo da minha alma.

Obs: A autora é poeta performática, membra da União Brasileira de Escritores (UBE), da Associação dos Amigos do Museu da Cidade do Recife (AMUC), parceira da Cultura Nordestina Letras e Artes. É integrante dos grupos “Confraria das Artes” e “Grupo de Estudos em Escrita Criativa”. Seus três primeiros livros publicados são coletâneas de poemas, Pura Impressão (2008), Um Coração que Canta (2011), Querido Diário Peregrino (2014). Seu quarto livro trata do gênero infanto-juvenil e é bilíngue: A menina e a árvore – The girl and the tree (2017). Seu quinto livro- Sessenta e um Poemas Para Uma Vida –  foi lançado em 2019. Tem participação em várias apresentações poéticas e performáticas. Contatos: www.bernadetebruto.com e [email protected]

Imagem da autora.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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