“Conhecer (…) por meio da Igreja a multiforme sabedoria de Deus” (Ef 3, 10) (Seguimento de Jesus: Graça e Discipulado – III)

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A Igreja é Corpo de Cristo, Jesus mesmo é a Cabeça. Como seres humanos, já somos imagem de Deus, sinais de Sua presença amorosa no universo (cf. Gn 1, 27-31). Com Jesus, imagem de Deus por excelência (cf. Ef 1, 10. 22-23; Fl 2, 5-11; Cl 1, 15-20; Hb 1, 1-4),  revela-se que, além de imagem, somos Templo de Deus (lugar de Sua habitação) e membros do Corpo que forma a plenitude do Filho (cf. 1Cor 3, 16; 6, 19; 12-29). Oh, mistério insondável, o Filho de Deus só se completa conosco, enquanto coletividade humana e todo o universo! (cf. Rm 8, 14-27: 1Cor 3, 16-17: 6, 19-20; 12: Rm 12). É a intuição bíblica do que hoje teólogos e teólogas chamam de “pan-en-teísmo” (tudo está em Deus) e para o que chamava a atenção o grande cientista, teólogo e místico Teilhard de Chardin. Em outras palavras, é a maneira de a Bíblia dizer  que somos no mundo sinais manifestativos da presença de Deus, a saber, somos “sacramento”. Pois “sacramento” é “sinal visível da Graça  invisível”, e a Graça é o Deus invisível que Se revela e Se dá (cf. O Prólogo da Const. “Dei Verbum”, do Concílio Vaticano II, sobre a Divina Revelação). De acordo com as Escrituras, a Criação é o primeiro “sacramento”, o meio pelo qual Deus Se comunica e Se faz presente por Sua Palavra eficaz, é o sacramento originário. Mediante as coisas e, particularmente, os seres humanos, Deus Se apresenta e Se mostra através de Sua imagem. Santo Agostinho dirá que a criação é o “primeiro livro” para mostrar Deus e d’Ele falar. Em seguida, vem Jesus como sacramento primordial, Cabeça da Criação e Imagem de Deus por excelência, como se vê nos textos referidos acima (cf. Cl e Ef, particularmente): “Quem Me vê, vê o Pai” (Jo 14, 5-11). A Igreja, enquanto comunidade e família de Cristo, é, na nova aliança, o sacramento fundamental que se faz representar a cada passo por cada qual de seus membros presentes nas inúmeras situações deste mundo. Se a razão de ser da vida, a seiva que nos alimenta, é a graça que é Deus presente em nós, esta é, por consequência, a razão de ser da Igreja. Por isso, o ministério da Igreja é proclamar e testemunhar a Graça. A Igreja é sacramento da Graça, sinal visível de que Deus, como o mais precioso dom, já está presente na própria raiz do universo. Nela, somos, umas pessoas para as outras, sinais da presença graciosa  e transformadora de Deus e, pessoal e coletivamente, somos sinais da presença de Deus no conjunto da sociedade humana. Através de nós, Deus manifesta Sua proximidade e Seu carinho. Que privilégio o nosso e que responsabilidade! Os gestos litúrgicos chamados de “sacramentos” nada mais são que maneiras diversas de a Igreja expressar simbolicamente, nas várias situações da vida, esse inaudito mistério da presença de Deus no universo e, particularmente, na vida humana. O uso do número sete para indicar os gestos sacramentais já é significativo como simbólico da totalidade.  A partir de palavras dos evangelhos (Batismo e Eucaristia), de tradições judaicas (Confissão, Unção) e de “ritos de passagem” (nascimento, iniciação à vida adulta, serviço comunitário, casamento, morte) presentes nas culturas humanas, foi-se elaborando essa simbologia ritual que aponta para a presença de Deus na totalidade das situações da vida humana. Para não inverter as coisas, devemos ter bem presente que, antes de tudo, a Igreja, enquanto comunhão humana,  Corpo de Cristo e Templo do Espírito de Deus, é, ela mesma, enquanto fato social comunitário, sacramento, “sinal visível da Graça invisível”. Nós, cada qual de nós e a comunidade, é que somos realmente os sacramentos. Dai é que a Igreja – nós –  se expressa  simbolicamente  em  gestos, palavras e coisas materiais, que têm o sentido de chamar nossa atenção para a presença de Deus na totalidade do universo e de nossa vida. Assim, antes de tudo, é a  Igreja que  é sacramento, só em seguida é que “faz sacramentos”  para manifestar seu rosto. Nada, absolutamente, que tenha a ver com sentimentos mágicos ou com a exterioridade de um Deus que nos chegasse repentinamente de fora, Ele já é sempre entre nós e em nós, como “sim” definitivo. É que a estrutura do ser humano é essencialmente simbólica: somos e nos desenvolvemos enquanto nos expressamos, nos simbolizamos; quem nunca diz “eu te amo” arrisca ver seu amor murchar, dizer ou simbolizar  é expressar um amor que já é, mas que cresce na medida em que se expressa. Por isso, a Igreja nos acostumou com a ideia de que, ao vivenciar os gestos sacramentais, “crescemos na graça”. É isto mesmo, mas é preciso compreendê-lo conforme a palavra de Santo Agostinho: “Quando te apresento o pão e o vinho e te digo: ‘O Corpo de Cristo’, tu me dizes: ‘Amém’, e eu compreendo como a dizer-me, ‘é isto mesmo, eu sou o Corpo de Cristo’, ‘e recebes justamente aquilo que já  és, o Corpo de Cristo”. Ao celebrar cada sacramento particular, o que fazemos é vivenciar e reafirmar que nós, enquanto comunidade, somos verdadeiramente o sacramento, o sinal visível de Cristo no mundo. Como diziam os Pais da Igreja, somos Seus pés, Seus braços, enfim, a presença ativa de Seu Corpo neste mundo que necessita de experimentar, no dia a dia da vida, a presença amorosa de Deus. Que privilégio e que responsabilidade que nos assombra! Por isso, facilmente degradamos os sacramentos a coisas ou atos religiosos, exteriores a nós. É o caminho mais fácil para objetivar a graça, tornando-a ação sagrada, num tempo sagrado, em lugar sagrado, nas mãos de uma pessoa sagrada… na verdade, o sagrado somos nós, com nossa vida neste mundo, pois Deus é a transcendência das relações que experimentamos em nós e entre nós.

Vida eterna e salvação eterna: “Vinde, benditos(as) de meu Pai!” (Mt 25, 34)

Segundo Jesus, o Reino de Deus não está circunscrito aos espaços religiosos, nem se identifica com a Igreja cristã. Ele inicia quando começa a ser revelada e obedecida a vontade de Deus na sociedade humana (cf. Jo 5, 24-25; Mt 18, 32-36; 25, 34ss). O Reino se estabelece quando os valores do Reino vão transformando as relações e as estruturas de convivência humana em vista de tornar realidade o “Xalôm”, ou seja, a felicidade, a dignidade, a comunidade, a solidariedade, a justiça e o cuidado com a vida e a paz, valores que devem caracterizar novas atitudes, comportamentos e instituições, no trato entre os seres humanos e destes com o conjunto da Criação material. É o que se depreende das Escrituras. No Reino se entrelaçam Ecologia (“oíkos+logía” – a lógica da Casa Comum) com Economia (“oíkos+nomía” – a lei que impomos à Casa para sobreviver e gozar de bem estar), com socialidade (relações sociais), como participação de todas as pessoas no uso dos bens da vida (ecumenismo, isto é, “oíkos+meno” – direito de permanecer na Casa, como se estivéssemos em conjunto em torno de mesa comum; finalmente, com política, exercício do poder para que haja pão para todas as pessoas e cestos que indiquem abundância e garantia de futuro (cf. Mc 6, 30-44) e todas as pessoas tenham seus pés devidamente lavados por quem parece mais importante, para participar do banquete da vida, sem que haja exclusão (cf. Jo 13, 1-20). No Evangelho segundo São João, o conceito de Reino se traduz com a expressão “vida eterna”. Trata-se de nova vida, transformada pela comunhão com Cristo, que se dá mediante os laços comunitários, cujo princípio é o próprio Espírito de Cristo (cf. Jo 15 e 17). Baste ler os textos contidos no Evangelho e na Primeira Carta de São João. Sào Paulo diz o mesmo de outra maneira, inspirando-se da linguagem profética que fala da “nova criação” (cf. 2Cor 5, 16-21; Is 65, 17-18; Jr 31, 31-34; £z 36, 23-29).

A “vida eterna” é nova qualidade de vida que se plenifica na ressurreição e se destina a durar eternamente. Deus criou o mundo para comunicar o Ser às criaturas e, assim,manifestar Seu amor para sempre (cf. Cf. Sb 1, 12-15; 2, 23). Santo Tomás de Aquino diz que, ao criar, Deus nos faz “participar” de Seu ser. Em Jesus, revelou que deseja salvar todos os seres humanos (Ti 2, 11). É o Criador, “amante da vida” (cf. Sb 11, 21; 12, 2). É Pai de misericórdia que busca amorosamente filhos e filhas desgarrados (cf. Lc 15, 11-32), é como marido apaixonado que não desiste da esposa infiel (cf. Os 1-3). Será, porém, que toda a humanidade se salva de fato? E como se manifestaria a Justiça divina? A Bíblia tem palavras duras para falar do julgamento de Deus, tanto nas escrituras proféticas, quanto nos escritos sapienciais e nos salmos. É clássica a imagem do Juízo Final (cf. Mt 25, 31-46). Estamos aqui diante de um mistério inefável. Quem poderia ter a ousadia de decifrá-lo? É por isso que a Igreja não pode ter autoridade de afirmar que “o inferno existe de fato”, enquanto condição final de seres humanos condenados a eterna e “desgraçada” solidão. Nada sabemos do destino final das pessoas, é segredo de Deus. O que a Igreja pode dizer é que “o inferno é possível”, pois, se alguém escolhe seu destino contra Deus e não acolhe Seu amor, Deus não poderia violentar a liberdade, e se alguém se condena a essa terrível solidão, de isolamento e egoismo, a essa condição de inferno, Deus não pode ser considerado injusto se isso se der.

Se não podemos atribuir-nos o julgamento de Deus, como proceder diante de pessoas que nos parecem empedernidas na maldade? Jesus nos convida a não julgar ninguém de maneira definitiva (cf. Mt 7, 1-5). O Apóstolo São Paulo  descreve a condição humana “natural” e histórica como situação de alienação, de vida sem liberdade, antes, de escravidão sob o peso da lei exterior (“sujeição aos elementos deste mundo”), do pecado e da morte; é preciso que nos alcance a salvação de Cristo, a qual nos torna livres, e estamos em Cristo quando participamos da vida de comunidade, pois aí se torna possível agradar a Deus pela obediência a uma lei interior, pela qual o poder se compreende como capacidade de ser e de comunicar capacidade a outros seres em torno a nós; por isso, as próprias capacidades (poder) se condividem e as coisas (posses) se compartilham, pelo amor o poder se faz serviço. Para que isso aconteça é preciso ser “resgatados das trevas e transportados à luz” (cf. 1Pd 2, 4-12). As pessoas que vemos como pecadoras e “más”, que não chegam a essa experiência da liberdade, que se acham alienadas, sob o peso da lei, da escravidão e da morte… como Deus agirá para com elas? Não o sabemos. Já na Antiguidade, o grande Pai da Igreja que foi Orígenes, manifestava  grande dificuldade de crer que Deus pudesse abandonar pessoas à condenação eterna.  Lutero enfatizava que a Justiça de Deus é justiça que nos faz justos(as) a Seus olhos, não é mérito de nossas obras, é pura graça, para nós e para todas as pessoas

O que podemos fazer, por enquanto, e isto o devemos fazer, são julgamentos históricos, pela observação  das ações humanas, pois “pelos frutos se conhece a árvore” (Mt 7, 15-20).  O pecado tem de ser denunciado no decorrer da história, como o faz continuamente a Bíblia e se vê particularmente na palavra de seus profetas, de Jesus e dos evangelistas. É preciso denunciar o pecado, pois produz inúmeras vitimas, a começar de seus próprios autores que revelam a própria alienação de se apartar da devida e libertadora comunhão com outros seres humanos. Mas não devemos esquecer que Deus é, antes de tudo, Misericórdia, e Sua Justiça se revela como coerência com a natureza que decidiu para Si mesmo, a saber, ser pleno Amor. Com humildade, temos de reconhecer que, se alguém se condena a eterna condição de isolamento e de trevas, Deus não  é injusto e não deixa de ser misericordioso. O que não podemos alimentar em nós, porém, é um perverso secreto desejo de vingança, ao pretender que Deus condene  quem, a nossos olhos, não “merece” ser salvo.  Seria a tentação de nos sentir superiores, mais fiéis e “merecedores” de prêmio. Jesus nos ensina a amar os inimigos e ser como “o Pai que faz nascer o sol sobre justos e perversos” (Mt 5, 43-48). Permanecendo no obscuro do mistério de Deus, dispomo-nos a acolher obedientemente a futura revelação do insondável mistério do destino eterno das pessoas. Enquanto caminhamos a tatear nas sombras de nossa condição atual, oremos,  como a Igreja sempre o tem feito,   pela salvação de maus, infiéis e pecadores, dos quais nós, na verdade, somos os primeiros(as). Santidade não pode equivaler, nem de longe, a sentimento de superioridade e de “mérito”, mas, ao contrário, é profunda consciência de indignidade perante a infinita misericórdia de Deus. É o que vemos na parábola do publicano (cf. Lc 18, 9-14). Na verdade, não passamos de servos e servas inúteis (cf. Lc 17, 7-10). Se chegamos a ser capazes de perdoar graves ofensas, como imaginar que Deus não o seja, logo Ele que tem diante de Si toda a eternidade para exercitar Sua infinita capacidade pedagógica e fazer brilhar Sua bondade? E se pensamos, como o Apóstolo São Paulo, que toda essa massa, fermentada pelo Pecado, é alienada, dominada e escravizada pelo poder das trevas, dotada de “livre arbítrio”, é verdade, mas roubada de verdadeira liberdade? Quem sabe, imaginar o absurdo do inferno não seria a forma negativa, o ponto limite,  para proclamar a absoluta gratuidade da salvação, apagando-se, assim, no mais íntimo de nós, qualquer resquício de prêmio ao mérito e de sentimento de superioridade em relação a quem consideramos “pecadores(as)”? “Soli Deo gloria” (Glória só ao único Deus)! Dizer que o inferno é possível para cada qual de nós, não seria a forma negativa (quem sabe, absurda)  de dizer que Deus é pura graça?

Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….
É Teólogo e Biblista
Assessor do CEBI, de lideranças de Comunidades Eclesiais de Base e de Escolas de Fé e Política

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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