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(para Paulo Mendes Campos – 1922/1991)

Afora,
a dança do Diabo em torno do teu berço e o teu riso,
o Ford último modelo que conseguiu parar em cima de ti, deixando-te para contares a história,
a implicância com os países nublados,
o riso acima de tuas posses,
o pressentimento de uma velhice turbulenta,
uma ironia cirandada de ternura,
os desregramentos da sensibilidade,
as primeiras letras sem dor,
o diploma, único, de datilógrafo,
o entendimento da passarela entre o efêmero e o símbolo,
o sentimento incomodamente impreciso de uma flauta que se esvaía, mas que tu nunca sabias onde,
a cautela com os advérbios de modo,
o comedimento das virtudes,
a sobrevivência de tua alma,
a noção da unanimidade que a todos envolve,
o axioma cruel e radioso da frustração artística,
o interesse pelo câncer que devora a constelação das crianças,
o jeito oblíquo e contraditório,
o hábito das andanças pela noite escura da alma,
a procrastinação interminável,
a não descrição de nada que amava ou que o assustava,
o jeito devagar na província do teu abandono,
os urubus, feios na terra e bonitos no céu,
a monotonia dos horários,
os mortos que fostes e que governavam o homem que foste,
a incompreensão dos mais velhos,
a reserva cruel que Deus mantém para com os homens,
o alívio na resignação ou no desespero,
as feridas da idade madura,
o retorno, a todo instante, ao medo infindável,
o arrepio de moça bonita,
o abismo de mulher casada,
o tédio da rua principal de Belo Horizonte,
a insônia feito um vasto mural no tempo,
o conselho tão certo, tão certo, que tu esqueceste,
a tua alma desgovernada.
a advertência drummondiana,
a posse de janelas e o ajuntamento de um patrimônio de paisagens,
os três cachimbos que não apresentaste ao homem tranquilo que não foste,
a mulher linda e nua que outros viram das janelas e que tu não,
as alegrias e tristezas em bom tamanho,
a tua trindade venerada: tempo, solidão e morte,
o tempo do adulto feito imposto cobrado pela inteligência do mundo,
a imanência sexual do olhar masculino diante da figura feminina,
a angústia solapada pela catástrofe humana,
a experiência filosoficamente sedutora com o LSD,
o símbolo como caminho mais fácil, mas complicado demais para nós, homens cotidianos,
o amor pelo sono (mais pelo silêncio do que pelo repouso),
a devassidão das perplexidades humanas pela poesia e pela prosa,
a aversão à notoriedade literária,
o olhar perspicaz para descobrir o sabor oculto nas miudezas,
a bebida para disfarçar a humilhação terrestre,
o humor e a ironia refinados,
a destreza decantada na lida com as palavras na invenção poética,
o parelhamento a uma geração de gigantes da cena crônica,
a escrita com lucidez cortante recheada de erudição fluida,
o socratiano atingindo a plena possibilidade na madureza plena: não sei nada,
a não concessão ao fácil,

frutos,
das tuas galhadas
genealógicas e afetivas e admirativas,
foste triste e impenetrável
feito um cisne de feltro.

E foste único
e tiveste um dia de praia e de sol,
antes que a noite chegasse
para engolfar teu mundo,
prenhe de anti-limites e anti-tédios,
gestor do teu não-pertencimento.

Obs: O autor é Jornalista e Gestor Cultural.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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