Dasilva 1 de agosto de 2020

A pequena casa cinzenta atraía cada vez mais as atenções do bairro. Nesse interesse havia muito de desconfiança, prudência e inconsciente hostilidade, mas pouco a pouco, foi nascendo também um sentimento de curiosidade confiante. Às vezes, chegava um desconhecido que, depois de examinar tudo, com ar circunspecto, dizia a Pavel: “pois, bem moço, tu que lês livros, deves conhecer lei. Sendo assim, me explica”… e começava a contar uma injustiça da polícia ou da administração da fábrica. Se podia, ele mesmo desenrolava a questão, senão encaminhava a pessoa a um advogado de confiança, na cidade.

Aos poucos, foi-se firmando um sentimento de respeito por esse jovem sério que falava de tudo com simplicidade, que escutava sempre com atenção, que mergulhava com interesse em cada assunto particular e, sempre descobria o fio comum que ligava as pessoas por milhares de nós apertados. Cresceu mais ainda na opinião pública, após a história do centavo do pântano. Havia um pântano cheio de podridão, atrás da fábrica, que criava mosquitos e semeava febres. O novo diretor querendo tirar proveito, fez um projeto para secá-lo e extrair turfa. A operação sanearia a zona e melhoraria as condições de vida de todos.

Para isso, mandou descontar um centavo de cada real dos salários, para a secagem do pântano. Foi grande a excitação entre os operários. Irritaram-se mais ainda ao saber que o imposto não seria descontado de outros empregados. No sábado em que a nota foi fixada, Pavel estava doente e não foi trabalhar. No domingo, um velho fundidor e um brabo serralheiro vieram lhe contar o que estavam tramando: “Reunimos os mais velhos e discutimos; os camaradas mandaram perguntar a ti, que és homem esclarecido, se há uma lei que permita ao diretor declarar guerra aos mosquitos com os nossos centavos? ”

“Há quatro anos os safados recolheram um montão de grana para construir balneários. Cadê o dinheiro… e balneário, nada! ” Pavel demonstrou a injustiça do imposto e o lucro que daria à fábrica… os dois saíram indignados. Preocupado, sentou-se à mesa e pôs-se a escrever. Depois, pediu a mãe para levar o bilhete à cidade, dizendo “é perigoso, é lá que se imprime o nosso jornal”. Na segunda, doente, não foi ao trabalho.  Ao meio dia, chega Fiodor agitado e feliz e depois de respirar falou: “Toda a fábrica se sublevou; mandaram te buscar; tu podes explicar melhor do que ninguém…. Se visses o que está acontecendo! ”

Contra os portões se comprimia a massa de mulheres aos gritos; no pátio a multidão compacta, sussurrando de excitação. Alguém berrava: “não é pelo centavo que lutamos, mas pela justiça… nosso centavo não é mais pesado que outros, mas tem mais sangue… fazemos questão do sangue…” Abafando o barulho das máquinas e caldeiras, vozes se fundiam num turbilhão… pessoas agitavam braços, se excitavam com palavras mordazes. A irritação adormecida, naqueles peitos cansados acordava agora, buscando uma válvula de escape… a cólera se apoderava das pessoas, as revoltava e as animava com uma raiva ardente.

“Camaradas”, disse Pavel, “somos nós que construímos as igrejas e as fábricas, somos nós que forjamos as correntes e fundimos o dinheiro. Somos nós a força viva que dá a todos o pão e o prazer, desde o berço até o caixão… Sempre e em toda parte, somos os primeiros no trabalho e os últimos na vida. Quem se preocupa conosco? Quem nos quer bem? Quem nos considera como gente? Ninguém! É tempo, camaradas, de compreender que ninguém nos ajudará se a gente não ajudar a nós mesmos! Um por todos e todos por um é a nossa lei, se queremos vencer o inimigo!”. Foi como se um furação se abatesse sobre a multidão.

Depois, começa a oscilar e sugere falar com o diretor. Na passagem do chefe a multidão, inclinava-se e tirava o boné em sinal de respeito. Ele viu no sorriso confuso o arrependimento de crianças, conscientes de terem cometido uma falta. Então, pergunta “que significa essa rebeldia? Por que pararam de trabalhar”. Reinou um silencio. Dois da comissão avançam e falam: “viemos lhe exigir que suspenda a decisão de descontar o centavo, por achar injusto o imposto”. “Quer dizer que na secagem do pântano, vocês só veem exploração e não a preocupação em melhorar suas condições de vida? ” E toda a comissão respondeu: “assim é”.

Olhando para Pavel, o diretor disse: “você, uma pessoa instruída, como não vê a utilidade dessa medida? ”. “Se a fábrica secar o pântano, à sua custa, todo mundo compreenderá” retruca Pavel. “A fábrica não é uma organização filantrópica! ”, disse ele; “ordeno que retomem, de imediato, o trabalho” e saiu. Um rumor de descontentamento percorre a multidão. “Se em 15 minutos não voltarem ao trabalho, obrigarei todos a pagar uma multa”. O murmúrio crescia, depois de sua saída: “e agora, advogado, falaste, falaste e foi tudo por água abaixo! ”, “proponho greve”, “por centavos? ”, “vai todo mundo pro olho da rua! ”.

“Pavel, não vai ter greve; o povo é ganancioso, mas covarde”, disse o amigo. A multidão esperou uma resposta dele. Mas, sentia que suas palavras se tinham evaporado, sem ter deixado marca naquela gente. Voltou pra casa triste e fatigado. Alguém lhe diz: “falas bem, mas não tocas o coração; é no fundo do coração que se acende a centelha; não se cativa o povo pela razão”; “te acusaram de socialista e acham bem feito se fores despedido”. Pavel ficou calado, mas inquieto. De repente, fala baixinho: “sou jovem, faltam-me forças! É isso! Não confiaram em mim, não seguiram minha verdade… fui eu que não soube dizê-la”.

*Composto com extratos de “A mãe”, Máximo Gorki

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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