Subir em pé de laranja nunca foi fácil. Arranhava minhas coxas, cortava meus braços, mas sempre valia a pena olhar o mundo lá de cima. E as laranjas eram doces quase como gotas de mel. Laranjas da ilha, minha mãe me dizia. Era a mesma laranja-lima daquele livro que ela leu para mim quando era pequena. Mas aqui em Minas, tinha este nome. Acho que era porque Minas tem muitos lagos e cachoeiras. Eu as abria enfiando o dedo fura-bolo e as partia ao meio. Não me importava que seu caldo escorresse pelo meu uniforme de escola. A blusa já andava meio encardida.

 Todos os dias chegava da escola às onze e meia. Minha mãe só sentia minha falta lá pelas duas da tarde. Tinha muito tempo para olhar o mundo, chupar laranjas e sonhar. Sonhava tantas coisas. Com uma barbie e sua casinha, com vestidos e sapatos que via nas vitrines. Mas meu sonho mais sonhado era ter um pai que todos os dias me esperasse em casa. Sonhava também não precisar ver, a cada dia, um homem diferente que se despedia de minha mãe como se ela não existisse. Eles jogavam o dinheiro sobre a mesa e saiam.

 Um dia quis saber dela porque eles lhe davam dinheiro. Ela não me respondeu. Continuou na corrida de fazer almoço atrasado. Perguntei novamente. Ela me deu um tapa na boca. O sangue sujou meus dentes e lábios. De tão espantada, não chorei. Me pediu perdão. Disse que estava garantindo que eu tivesse uma vida melhor que a dela e tentou me abraçar. Fugi para o quintal. Desde este dia o pé de laranja virou também meu confidente.

 Quando me formei no ensino fundamental, em Santo Antônio não tinha mais escola para mim. Minha mãe resolveu que iríamos para João Monlevade – uma cidade grande e cheia de fumaça. Mudamos com o pouco que tínhamos e com o dinheiro de um dos homens que sempre ia ver minha mãe. – Era um empréstimo – ela dizia a ele e a ela mesma. Ele dizia: – Não precisa me devolver. Você sabe o que precisa fazer.

 Monlevade, como era chamada, não nos recebeu muito bem. Todas as noites eu ouvia minha mãe chorar. Tampava os ouvidos. Fingia que ainda estávamos na nossa cidadezinha e que no dia seguinte rasgaria minhas mãos nos espinhos da laranjeira. Voltaria a sonhar. Mas o dia seguinte era igual a todos os outros daquele último ano. Ela agia como se nada tivesse acontecido. Eu fingia que nada tinha ouvido. Tinha medo de perguntar e não saber o que fazer com a resposta.

 Continuava chegando mais tarde em casa. E minha mãe trancada no quarto na hora do almoço.  Em Monlevade não havia quintal, nem pé de laranja da ilha. Passei a ficar na biblioteca da escola, cada vez mais encantada com as viagens que fazia nos livros. Quando comecei a ler Teresa Batista Cansada de Guerra não pude deixar de pensar em minha mãe. E pensei que se eu sonhasse forte ela poderia encontrar um Jereba, mesmo que fosse casado. A ideia era tão boa que saí correndo para contar a ela. Cheguei em casa sem fôlego. Fui direto para a cozinha. Na pia estava aquele facão que ela usava para cortar osso da carne de porco. Sempre achei que ele não era bem afiado, porque ela tinha que bater com um pedaço de madeira para cortar o osso.

 Era estranho ela não estar ali. Os amigos dela nunca ficavam até aquela hora. Percebi o silêncio gritando na casa. Não a chamei. Não tinha este costume. Fui ao fogão e as panelas estavam vazias. Apenas a panela de feijão permanecia lá, quieta e fria. Passeei o olhar a buscar algo diferente na cozinha. Apenas a ausência dela e aquele facão limpo e meio enferrujado sobre a pia.

 Voltei pelo pequeno corredor e entrei no quarto que dividia com ela. Só a vi depois que rodeei a cama de casal onde dormíamos. Ela estava no chão. Nua. Suas coxas roliças estavam abertas e ensanguentadas, seus seios pequenos com um buraco entre eles e um caminho de sangue grosso saindo daquele buraco e se espalhando em sua barriga.

 Fiquei ali olhando. Sem reação. Sem grito. Sem choro. Eu sabia que deveria fazer algo, mas meus olhos estavam presos nela. Não sei por quanto tempo fiquei assim. Só consegui pensar no facão lá na pia da cozinha. E minha mãe definitivamente coberta de sangue ali no chão. Definitivamente.

 Sem pensar, corri para a área da cozinha. Em Monlevade não havia quintal, nem pé de laranja da ilha.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]