Há algum tempo atrás, me meti a estrelar um ovo. Busquei dar os mesmos passos de mamãe, a água na frigideira, já recebendo o calor do fogo, um pouco de manteiga que logo se derretia, e, então, quebrar o ovo, com o cuidado da gema se manter intacta. O resto se encarregava o fogo, minha atribuição se limitando a jogar, com a colher, um pouco do líquido em cima da gema e da clara que se formava. O ovo estava estrelado, a clara apresentava uma alvura de dar gosto, tudo na medida para ser devorado.

Outra vez, um botão do paletó se soltando, a exigir ação imediata. Iniciei a cirurgia. Agulha e linha, a dificuldade de inserir a linha no buraco da agulha, seguindo também a mesma trajetória de mamãe, que eu via costurando, passo a passo. Uma vez exitosa a tentativa de assentar a linha, suficiente esta para a operação a ser realizada, o nó dado no final para servir de apoio no momento da operação, me portando exatamente como ela fazia, sem tirar nem pôr. A impressão que me vinha era de vê-la, assumindo meu corpo, nos seus movimentos lentos e precisos, a comandar toda a epopeia de conserto, até, no final, ao cortar a ponta das duas linhas com a tesoura, sem nenhum gesto de cansaço. Era só silêncio.

Tudo nela era repetitivo, saltando diariamente pelas mesmas pedras, sem nunca se arriscar a pisar em pedra desconhecida. Quando os três filhos já eram casados, papai me reclamava (só a mim, a ela, nenhuma palavra), que comia carne frita a semana inteira, para não desperdiçar. É que mamãe continuava a cozinhar como se os filhos ainda estivessem em casa, a mesma metragem de três décadas atrás, quando, naquele exato momento, só ela e papai se mantinham em casa, e, como a comida dela era diferente, feita de encomenda, organismo suave que se desmanchava em dor com qualquer coisa ingerida, toda a carne frita era destinada a ele, que sabia o quanto pesava o desperdício em seu bolso.

Chego à conclusão que o verbo morrer não se lhe aplica, ela, que se mantém viva, como guia de muitos dos meus passos de perfeita imitação. Contudo, não herdei a sua capacidade de raciocínio rápido, a resposta na ponta da língua, enquanto a fogueira ainda queimava. É dessa forma que a palavra saudade guarda algum ranço amargo de falta, que a sua ausência evidencia a todo instante – Diário de Pernambuco, 25 e 26 de janeiro de 2020.

Obs: Publicado no Diario de Pernambuco
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras
  

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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