Djanira Silva 1 de agosto de 2020

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Caminhei pela rua, subi a calçada e parei diante dela. Ainda a mesma, pintada de branco, porta de postigos articulados. Nas janelas cortinas de crochê. Aquela seria sempre a minha casa, a minha velha casa.
Quem sente saudade não se pertence anula a vontade muda de rumo. Em cada pedaço daquelas paredes havia uma história que nascera e crescera comigo.
A casa me atraia como um ímã fortemente magnetizado. Entrei. Um sol de outono iluminava a sala. Não precisava de grande esforço para lembrar de como tudo era antes: as cadeiras de madeira escura forradas com um tecido adamascado. Nos espaldares e nos braços flores e folhas entalhadas na própria madeira. Os almofadões de veludo marrom, com ramos de margaridas desenhadas em fios dourados e com acabamento de berloques amarelos. No meio da sala um centro guarnecido com um pano muito alvo, de labirinto, que se destacava na madeira escura. Na entrada, o porta-chapéus, que servia mais às bengalas, guarda-chuvas e ao guarda-pó que meu pai usava nas viagens para proteger a roupa branca. Olhando para o pequeno móvel tão importante com seus ganchos prateados e espelho bisotado, lembrei de um fato que marcou minha infância. Na parte de baixo minha mãe colocara uma jarra de opalina onde um ramo de miosótis, em relevo, dava um toque muito especial à brancura translúcida do vaso. Um dia, correndo atrás do gato, tentei pegá-lo e, de um pulo, ele bateu na jarra que num piscar de olhos se transformou em cacos. Medrosa e chorando, escondi-me atrás do sofá. Pelos soluços minha mãe me localizou. – Por que está chorando, menina? Com dificuldade respondi – Porque não tenho um tio.
Uma das falhas da minha infância foi não ter um tio. Invejava as meninas da minha idade que diziam: hoje escapei de apanhar porque meu tio não deixou. Meu tio, hoje me levou à matinê. Sempre ouvi histórias maravilhosas de tios bonzinhos que protegiam sobrinhos trelosos. Fiquei com raiva do gato que enquanto eu assumia a culpa sozinha ele, encarapitado no muro, insultava o cachorro da vizinha.

Como uma sombra movida pelo sol fui mudando, lentamente, de lugar. Num recanto da sala de jantar a máquina Singer, ainda de pedal, companheira da minha mãe que nela alinhava as noites de solidão e silêncio. Muitas vezes, quando terminava os afazeres de casa sentava-se conosco nos degraus da cozinha e falava da saudade que sentia e dos sonhos que sonhara embaixo dos cafezais junto com as irmãs, idealizava um futuro onde todas terminavam felizes para sempre.
Durante muito tempo fiquei olhando as cadeiras vazias. “Desce daí, menina, as cadeiras são para as visitas”. Antes daquelas pomposas poltronas toda a mobília da sala se resumia a um sofá de palhinha e quatro cadeiras.
As lembranças constroem os caminhos perpétuos do passado.
O vento balançava as cortinas de crochê e renda. Por que tão poucas portas? Agora, com elas, as pessoas se isolam cada vez mais. No lugar das cortinas tecidas, em finíssimo crochê ou em belos trançados de filé, trabalho quase tão antigo quanto a humanidade, colocaram portas, grades, cadeados e silêncio.
Na sala, um quarto grande onde dormiam meus pais. No corredor, vários de ambos os lados – o da minha avó, os das crianças e um pequeno onde havia um santuário – o quarto dos santos.
Na sala de jantar, uma rede estendida – onde minha mãe ninava os filhos – uma cozinha grande, fogão de barro, um depósito de carvão ao lado, a porta dividida em duas, a escadaria que dava para o quintal.
Embaixo, no sótão, os trastes velhos amontoados, cobertos de poeira. Os esqueletos das cadeiras de vime, um berço desmontado, vários papéis roídos pelas traças. A cadeira de balanço que fora do meu avô, pendia de um lado como um velho capenga. Remexi numas velhas caixas e encontrei bruxas de pano, úmidas e mofadas e um bonequinho de corda que engatinhava. Para a época era uma grande novidade. Deixou de engatinhar no dia em que tentei consertar-lhe as pernas que eram dobrada. Quebrei as duas.
Começou a chover. Senti frio, o cheiro da terra, dos manguitos verdes e das goiabas maduras. Lembrei da menina que fugia de casa para roubar uvas no parreiral da vizinha.

Saí. Fechei a porta. De longe pensei ver nas janelas as cortinas de crochê sacudidas pelo vento.

Obs: A autora é poetisa, escritora contista, cronista, ensaísta brasileira.

Faz parte da Academia de Artes e Letras de Pernambuco, Academia de Letras e Artes do Nordeste, Academia Recifense de Letras, Academia de Artes, Letras e Ciências de Olinda, Academia Pesqueirense de Letras e Artes , União Brasileira de Escritores – UBE – Seção Pernambuco
Autora dos livros: Em ponto morto (1980); A magia da serra (1996); Maldição do serviço doméstico e outras maldições (1998); A grande saga audaliana (1998); Olho do girassol (1999); Reescrevendo contos de fadas (2001); Memórias do vento (2003); Pecados de areia (2005); Deixe de ser besta (2006); A morte cega (2009). Saudade presa (2014)
Recebeu vários prêmios, entre os quais:

Prêmio Gervasio Fioravanti, da Academia Pernambucana de Letras, 1979
Prêmio Leda Carvalho, da Academia Pernambucana de Letras, 1981
Menção honrosa da Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1990
Prêmio Antônio de Brito Alves da Academia Pernambucana de Letras, 1998 e 1999 
Prêmio Vânia Souto de Carvalho da Academia Pernambucana de Letras, 2000
Prêmio Vânia Souto de Carvalho da Academia Pernambucana de Letras, 2010
Prêmio Edmir Domingues da Academia Pernambucana de Letras, 2014

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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