Perdi a noção das datas, eu, que, em tempos normais, carregava o calendário do mês na cabeça. Agora, excluindo o dia, e, assim mesmo parando para meditar, me perco na tarefa de indicar a data. Não se cuida de deficiência mental. Estou perfeitamente lúcido. O estorvo repousa na atualidade atípica que estamos a viver, reclusos em nossas casas, o medo de ir as ruas, obrigado agora a ver o sol nascer e se esconder, completamente engaiolados, embora não sejamos parentes de passinho nem de papagaio. De parentesco, da minha ciência, só com os macacos.

O pior é que não se vê onde o inimigo mora e se localiza.  Se vai aparecer em disco voador pilotado por alienígenas, ou em foguetes que algum país vai lançar contra nossa aldeia. O que se anuncia, se pede e se implora é o isolamento, na transformação do lar em prisão, temporária reclusão que não se sabe, com absoluta certeza, quando vai terminar, quando o cidadão pode, enfim, retornar a sua vida de antes. Saudades mais saudades igual a um caminhão de saudades.

Eu me acautelo, obediente, sem mais contar os dias, na mente o desejo de um acidentado, sem cura, que, quando se acordava de manhã já desejava que chegasse a hora de dormir. Estou quase assim. Não arredo os pés fora de casa. Pode ser que, na esquina, o inimigo se encontre a me esperar, dardo venenoso na mão, para atingir meu pulmão, já deficiente pelos vários anos de cigarro. E aí, não terá rezas a Santo Antonio que me salve. Eu fico em casa, digito o que vem na cabeça, leio romance, vejo filme que me agrada, tomo café, almoço, janto, ajudo nos serviços domésticos, forro cama, coloco a mesa, passo álcool gel na mesa e nas mãos, lavando as últimas com sabonete porque li, alhures, que o inimigo não gosta de sabonete. Já pensei até em saborear sabonete, para mais me fortalecer internamente. Não transformei o desejo em realidade.

Esqueci da cerveja e do vinho, a encher meu copo e minha taça, aqui e ali, de quando em quando. Estou engordando, como se diria se tivesse galinha no terreiro ou carneiro no pasto. Enfrento o dia, fotografando o nascente e o poente. O entrave é não saber a data em que termina a prisão domiciliar. No conjunto, uma desgraça. O que mais dói é ainda dar graças a Deus de não usar tornozeleira, eu, que, se pudesse, eliminava sapatos e meias. A que ponto chegamos… – Diário de Pernambuco, 4 e 5 de abril de 2020.

Obs: Publicado no Diario de Pernambuco
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras
  

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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