A corrente da graça é a corrente do amor: “Quem ama nasceu de Deus e conhece a Deus, porque Deus é amor” (1Jo 4, 7-8) (Seguimento de Jesus: Graça e Discipulado – II)

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É bom recordar que Deus não apenas ama, mas É amor. Amar não é apenas um ato divino, mas é a própria natureza que Deus Se dá. Pois Deus é pura liberdade, não tem, como nós, natureza predeterminada. É Ele que decide e faz de Si o que quer. Decide, por  exemplo, tornar-se ser  humano em Jesus (cf. Fl 2, 5-11). Isto, porque decide ser todo amor. Ora, amor e liberdade coincidem, pois só é verdadeiramente livre quem ama. E em Jesus, Filho de Deus, revela-se, com radicalidade, algo característico do amor: “quem ama arrisca sofrer”. Não é o culpado quem sofre, mas o ofendido, aquele que não se sente correspondido no amor. De fato, a dinâmica normal da graca é suscitar gratidão. Disto nos fala Jesus no episódio dos dez  leprosos, dos quais só um voltou para render graças (cf. Lc 17, 11-19). O sentimento de gratidão é expressão de reconhecimento, maravilhado por experimentar a proximidade imerecida da graça que é Deus. É, então, consequente que a gratidão se expanda em gratuidade. Quem se sente agraciado, salvo e resgatado pela proximidade de Deus, é naturalmente impulsionado a tornar-se graça para outras pessoas, irradiar “o brilho da face de Cristo” (cf. 2Cor 3, 18). É o mandamento de Jesus: “De graça recebestes, de graça dai!” (Mt 10, 8).

A corrente do amor, ou o círculo graça-gratidão-gratuidade, torna livre , ou seja, livra de temor (cf. 1Jo 4, 18). Com efeito, o que se dá no processo de conquista amorosa revela exatamente isto: confiança e liberdade, e manifesta que não há proporção entre conquista e dom. Pode-se fazer de tudo para conquistar alguém, mas a pessoa só vem e só se dá se quiser. Um dos  aspectos mais sublimes da experiência da graça é radicalmente experimentar  as próprias conquistas como dons da Vida. É o que se sente, por exemplo, no nascimento de uma criança, filha ou filho: sabemos bem que fomos nós que a fizemos, é geração nossa, mas, ao chegar, nos surpreende como totalmente dom, não há proporção entre o que possamos ter feito e o presente que a vida nos dá.

Só é livre quem ama e o amor se mostra enquanto se manifesta concretamente mediante o serviço. A liberdade só é possível no amor e este se traduz em serviço. Servir, com efeito, é oferecer a outrem o próprio poder, ou seja, nossas capacidades, aquilo de que somos capazes e. deste modo, comunicar poder, “empoderar”, como se diz hoje, com esse neologismo que nos vem do inglês. Torna-se livre quem se livra sempre mais de necessidades, de apegos a pessoas e a coisas, quem se livra das próprias carências. Liberdade não é necessitar de que o mundo se volte para si, mas, ao contrário, é voltar-se amorosamente para fora, para pessoas e coisas e, sobretudo, é livrar-se da necessidade de afirmar a si mesmo(a), chegando inclusive a superar a necessidade da própria sobrevivência, do instinto primário de ser, dispondo-se a entregar-se e até a morrer por outrem (cf. Jo 15, 13; 1 Cor 13; Gl 5, 13-14.16-18.22-26; Fl 2, 1-11; Ef 5, 21-33). Por isso, a liberdade dispõe ao servico, que é a manifestacão concreta e prática do amor (cf. Mc 8, 34-37; 10, 35-45). Sabemos como obediência quer dizer voltar o ouvido na direção de outrem (“ob”= em direção a; “audire”= escutar); dar atencão às necessidades de outrem. Isto ajuda a entender como liberdade, amor e servico  são, na verdade, o cerne da experiência da graça, isto é, da experiência de Deus. Em termos antropológicos, é a autêntica experiência do poder. Sim, porque a identificação entre poder e opressão não deriva do poder por si mesmo, mas da alienação, do medo de não poder, ou seja, da necessidade de autoafirmar-se, em outros termos, da insegurança de ser. Isto ajuda a compreender o que nos quer dizer a Primeira Carta de São João quando proclama que “Deus é Amor” e “quem ama nasceu de Deus e conhece a Deus”.  Na verdade, o amor, a capacidade de entregar  a própria vida, é o que define a pessoa enquanto tal, pois “pessoa” é essencialmente relação, é poder realizar-se enquanto passa a habitar outras pessoas. Em outras palavras, ser pessoa é possuir-se de tal modo a poder entregar-se, pois só se entrega quem se possui,  passando a ser um(a) com outrem. Se alguém se reserva e se fecha para si já não se possui, degrada-se, como alertou Jesus: “Quem se agarra à própria vida, a perde; mas quem a entrega, a salva” (Mc 8, 35). Pois quem assim procede, longe de manifestar poder, revela carência, “necessidade” e medo: “Só ama quem vence o temor” (1Jo 4, 18).

Com a pessoa, dá-se algo aparentemente paradoxal: só se possui quando já não está mais para si mesma, mas para alèm de si, quando é capaz de dar-se, tendo superado a “necessidade” de guardar-se para si. Ora, entregar-se é ultrapassar-se, transcender-se, lançar-se no horizonte misterioso das relacões no qual outras pessoas se tornam capazes, “adquirem” o incrivel direito  de “exigir” o dom total da vida como se fossem Deus. Só que ninguém tem, por si mesmo, esse inaudito poder de exigir a vida de outrem, uma vez que somos todos e todas iguais e nossas vidas têm todas o mesmo valor. Por isso, à primeira vista, não teria sentido dar-se em troca de ninguèm, cada qual tem seu próprio destino, No entanto, as pessoas se dão efetivamente, se “mortificam”, isto è, morrrem um pouco a cada dia em favor de outras pessoas, e chegam finalmente até a literalmente “morrer por amor” ou “morrer de amor”, no martírio, por exemplo. É que, na transcendência da pessoa em relação a outra, o que , na verdade, se revela é a transcendência de Deus. Só Ele, o Absoluto e Fonte originária da vida, pode exigir tudo de nós. É, por isso, que a Biblia não diz apenas que “Deus é Amor” no sentido de que nos ama; é, antropologicamente, bem mais radical: diz que o Amor è Deus, quando afirma que “quem ama nasceu de Deus e conhece Deus”, isto é, faz a experiência viva de Deus . Foi o que compreendeu bem  Madre Tereza de Calcutá. Conta-se de um encontro seu com um pobre de rua: ao perceber que não era indiana e mesmo  assim se interessava por ele, pergunta-lhe: “Por que se interessa por mim? Qual a sua religiao?” E ela: “Minha religião é o amor”. E ele insiste: “E qual é o seu Deus?” E ela: “É você”. A partir dai, podemos compreender melhor a profundidade do “Emanuel”: é entre nós e em nos que Deus se revela como Graca, algo nada abstrato, antes, tremendamente concreto e quotidiano, e nem é  preciso “saber” ou formular expicitamente essa experiência, ser pessoa crente ou religiosa, basta “experimentar” amar. Não è questão de formulação, mas de experiência. Alguém pode atè ser pessoa que professe ateísmo  ou agnosticismo. Na verdade, o contrário da fè não é o ateísmo, mas a idolatria, pois esta, sim, é  a incapacidade profunda de não se afirmar como deus por força do medo de se entregar em amor. É que a idolatria é radical expressão de absurdo narcisismo, “projeção” de si mesmo(a), cuja causa profunda é o medo de perder-se e deixar-se roubar pela relação de alteridade. Enquanto a fé, por seu lado, é confiança, sentimento de firmeza e empenho de fidelidade no acolher e seguir a direção revelada pela voz da Vida, mediação do chamado de Deus, sua fonte.

Jesus é o revelador da Graça: “A Lei foi dada por Moisés, a Graça e a Verdade vieram por Jesus Cristo” (Jo 1, 17)

O Evangelho segundo São Lucas apresenta o ministério de Jesus como “tempo de anúncio da Graça de Deus”. E como isto se manifesta? Na proclamação da libertação de todo cativeiro, no reconhecimento da dignidade das pessoas e grupos pobres, na restauração da visão de quem jaz em trevas (cf. Lc 4, 16-21; Is 61, 1-9; Mt 4, 12, 17).  De acordo com o texto de São João, sua figura é a do Pastor que veio “para que tenham vida e vida em plenitude” (Jo 10, 10). Seus gestos, palavras e ações são todos no sentido de restaurar a vida das pessoas pobres, enfermas, excluídas, revelando-lhes o amor de Deus que a todos(as) inclui. Baste acompanhar nos evangelhos os vários “sinais” que Jesus realiza ao longo do seu ministério (cf. Jo 20, 30-31). Segundo o Apóstolo São Paulo, em Jesus é o próprio Deus que “desce”, como que renuncia a Sua condição divina e se faz um de nós e, de maneira extrema, nosso servidor (cf. Fl 2, 1-11).

Há declarações de Jesus particularmente significativas para indicar a direção de Sua vida e ação. Ajudam-nos a compreender que não temos de agir previamente para agradar a Deus e, assim, merecer ser amados(as) por Ele. É que  Ele nos ama sem nada pedir, pois de nada necessita. É tal Sua plenitude  de vida que tudo o que fazemos para responder-Lhe e observar Sua vontade só resulta em felicidade e bem estar para nòs, pois corresponde à estrutura de nosso próprio ser. Ao entregarmo-nos a Ele, devolve-nos a nós mesmos(as) e nos envia às outras pessoas, sobretudo àquelas que mais necessitam. Jesus nos revela que Deus é como o pai que acolhe o filho desgarrado que abandona a casa e, ao voltar, em vez de ser castigado  e abandonado, é recebido com festa (cf. Lc 15, 11-32). É como o pastor que deixa sozinhas noventa e nove ovelhas ao relento, enquanto sai à procura de uma única que se perdeu (cf. Lc 15, 4-7). É como a mulher pobre que festeja com as amigas por ter achado a moedinha perdida depois de vasculhar todos os cantos de casa (cf. Lc 15, 8-10). Deus não ouve a oração do fariseu que Lhe confessa suas boas obras, mas escuta bondosamente o murmúrio do publicano que, compungido, apenas confessava ser pecador (cf. Lc 18, 9-14). É como o patrão que paga os trabalhadores da última hora com o mesmo salário de quem havia labutado toda a jornada, porque visa a satisfazer a necessidade: de cada qual segundo sua capacidade ou possibilidade, a cada qual segundo sua necessidade (cf. Mt 20, 1-17). É como o rei que oferece um banquete e manda trazer das encruzilhadas dos caminhos quantos se achassem (cf. Mt 22. 1-14). Na versão de Lucas se diz que os convidados devem ser “pobres, estropiados, cegos e aleijados” (Lc 14, 21). É o convidado que se põe na posição do noivo e o livra do vexame de não mais ter como distribuir vnho aos hóspedes da festa de casamento, e o vinho que apareceu era ainda melhor (cf. Jo 2, 1-12).  Para confirmar isto, Jesus privilegia em suas relações as crianças, as mulheres, as pessoas pobres, enfermas, desprezadas, de má fama e excluídas. (cf. Mc 10, 1-31). Para Ele, publicanos e prostitutas precedem no Reino de Deus as lideranças religiosas (cf. Mt 21, 31). Interpreta seu próprio comportamento ao dizer que são os “doentes que necessitam de mèdico e não os sãos, vim, não para encontrar-me com justos, mas com pecadores”  (Mc 2, 17). É emblemático do que significa a graça  a promessa de Jesus ao bandido crucificado a seu lado: “Hoje mesmo estarás comigo no Paraiso” (Lc 23, 43). Simplesmente promessa, sem impor nenhuma condição. A graça éJesus que toma o lugar e se identifica com o menor dos irmãos (cf. Mt 25, 31-46).

Nossa vocação  é ser filhos e filhas de Deus, irmãos e irmãs em Cristo, Autor e Princípio de nosso Caminho (cf. Jo 14, 6; Gl 4, 1-7; Hb 12, 1-4): “A quem chamou também justificou, e a quem justificou também glorificou” (Rm 8, 30)

A graça é um processo. Embora já estejamos salvos(as), por enquanto “fomos salvos(as) na esperança” (Rm 8, 24). O que se consumará na glória, porém,  já começou verdadeiramente no momento em que  aderimos a Deus pela fè que se traduz em pràticas de amor. Chega-se a dizer que “já nos fez assentados nos céus” (Ef 2, 6; cf. Fl 3, 20; Cl 3, 1-4). A Primeira Carta de São João distingue nosso momento de agora da final consumação gloriosa, enquanto ao mesmo tempo estabelece sua radical continuidade: já temos a condição de filhos e filhas, mas ainda falta se manifestar  que “seremos semelhantes a Ele porque O veremos tal como Ele é” ( 1Jo 3, 1-2).

De acordo com o Apóstolo São Paulo, o processo da graça que transforma nossa vida tem, fundamentalmente, os seguintes passos:

REDENÇÃO: Jesus, Filho de Deus feito homem, ao tornar-se um de nós, abre novo caminho para a humanidade perdida. Ou seja, o caminho da vida em comunidade, que nos livra da “alienação”, da escravidão da lei, do pecado e da morte (cf. Rm 7); ou seja, nos livra de ser dirigidos(as) de fora, nos faz livres. Confirma que a salvação da condição humana se dá mediante a experiência da transcendência, que corresponde à entrega da própria vida por amor (cf. Rm 5, 1-11). É assim que nos redime, ao entregar-se incondicionalmente à vontade de Deus, em perfeita obediência, inaugurando a “peregrinação da fé” (cf. Hb 11,1-12,4), Temos certeza de que nossa humanidade, tão precària (“carne”, segundo a Biblia), abriga em seu seio alguèm que, sendo totalmente humano, é perfeitamente unido a Deus e, como Cabeça, carrega coinsigo o inteiro Corpo (cf. Cl 1, 15-20; Ef 1, 3-23). Não é apenas a morte e o derramamento do sangue na cruz que nos salvam. O próprio ser de Jesus e toda a Sua vida são redentores. Suas opções e gestos  para restaurar a integridade dos seres humanos chegam a tal coerência que Lhe inspiram a coragem radical de  enfrentar a rejeição e a condenação à morte. Sua morte, decretada pelos poderes religiosos, políticos e econômicos de Sua època é o coroamento da obra redentora empreeendida ao longo da vida, eis o que nos ensinam todos os quatro evangelhos. O derramamento de todo o Seu sangue é só a expressão física  e, ao mesmo tempo, simbólica, da oferta radical, sem reservas, da vida toda “até o extremo” (Jo 13, 1). Ele è como nosso “go’el”, o “parente” que, nos tempos do Primeiro Testamento, tomava sobre si a ofensa e as dores da família e do clã e, assim, lavava-lhes a honra e redimia, restituindo-lhes a dignidade ferida (cf. Sl 78, 35; Pr 23, 10-11; Is 19, 20; 53, 1-8; Jo 1, 29: “que tira o pecado do mundo” – o evangelista tira proveito da ambiguidade do verbo “tirar” que significa, ao mesmo tempo, carregar sobre si e levar para fora).

JUSTIFICACÃO: Ao tornar-se humano como nós, Jesus revela nossa vocação a ser fihos e filhas de Deus, à semelhança d’Ele mesmo que é o Filho por excelência. Pela solidariedade radical de Jesus conosco (cf. Hb 5, 1-10), que assume verdadeiramente a natureza humana enquanto “Verbo que se faz carne” (Jo 1, 14), Deus nos vê e nos aceita como irmãos e irmãs de Jesus, como justos(as), não por “justiça de obras que tivéssemos feito”, mas por justiça divina que nos torna justos(as) a Seus olhos, pois “justiça divina” quer dizer coerência de  Deus com seu próprio propósito de salvação (cf. Rm 3, 21-4, 25; 6, 1-14).

RESTAURAÇÃO ou SANTIFICAÇÃO: O perdão divino é recriador da integridade humana. Se Deus de fato nos justifica, começa o processo de curar-nos das feridas e consequências do pecado. Madre Tereza, no episódio do encontro com o mendigo, citado acima, mostra compreender profundamente que a transcendência divina se revela na transcendência das relações humanas, que nos desinstala, nos descentra do eu e nos faz ultrapassar-nos. É na comunidade, na aceitação profunda da dimensão coletiva da vida, que a pessoa tem a chance de transformar-se, de tornar-se humanamente melhor. Humanizar-se é, de fato, já estar em Deus, mesmo que não se saiba disso racionalmente ou, melhor, de maneira reflexiva. É que a restauração da pessoa, em sua autenticidade humana, se dá mediante o processo de santificação, ou seja, de jogar-se no horizonte da transcendência, ao livrar-se  do apego a si mesma, deixando de “ser para si”, e projetar-se  “para além de si”, no amor que se faz serviço.  A comunidade é sempre o espaço para o processo de humanização. A comunidade da Igreja deve sê-lo de maneira particular, pois aí aprendemos com Jesus, ao seguí-Lo como discípulos e discipulas. Os textos do Apòstolo São Paulo e de São João aprofundam essa dimensão de nossa transformação antropológica com a vitória sobre a “alienação” (lei, pecado, escravidão) que nos é possibilitada na vida de comunidade, particularmente as cartas aos Gàlatas, aos Romanos e a Primeira Epistola de São João.  Como filhos e fihas de Deus, assumimos conscientemente, refexa e explicitamente, nossa identidade de irmãos e irmãs, aprendendo a conviver na “casa” de Jesus, de acordo com os modelos de vida que Ele mesmo encarna, como vemos tão insistentemente no Evangelho segundo São Marcos. Aí Jesus chama seus discípulos e discípulas a romper com o Mar (cf. 1, 14-20) que simboliza a condição vaga e alienada da mutidão que oscila entre a atração por Ele e a submissão às estruturas do sistema (cf. 3,7-6,6), a romper com  a Sinagoga, o espaço dos inimigos da proposta do Reino (cf. 1,21-3,6) e a romper com o Templo onde se concentra  toda a corrupçao, injustiça e crueldade do sistema estabelecido (cf. 11-13), para nos tornarmos Sua nova familia (cf. 3, 20-35; 4, 10-12). E nossa fraternidade deve expandir-se e transbordar em solidariedade universal, como Ele mesmo o ensina por sua maneira de ser e de agir (cf. 6, 1-8,21).

A partir disso, Dietrich Bonhoeffer, pastor luterano alemão martirizado pelo regime nazista, ensina a distinguir entre “graça barata” e “graça preciosa”. Decerto, a graça não tem preço, enquanto condição prévia  para a amizade com Deus, pois isso seria degradá-la a resultado de “obra humana”. Não basta, porém, sentir-se salvo(a) gratuitamente por obra de Deus. Uma vez que experimentamos a maravilha da graça redentora e justificadora, acolhemos a revelação de que o próprio Espirito de Deus  é “derramado em nossos corações” (Rm 5, 5) e nos transforma ao produzir Seu fruto em nòs (cf. Gl 5, 22-24). É o “caminho” da fé no qual nos está garantido que se vai operando em nós a obra recriadora de Deus, a ponto de chegarmos a fazer as obras de Jesus e “atè maiores do que estas” (cf. Jo 14, 12-14). É o Espirito de Jesus que nos vai transformando e assimilando a Ele (cf. Jo 14, 15-31; 15, 1-27; Rm 8).

É assim que devemos compreender a afirmação de São Tiago, de que “a fé sem obras é morta” (Tg 2, 17), pois a fé necessariamente “opera pelo amor” (Gl 5, 6) e o amor é experiência de Deus em nós, como diz São João. Em sã antropologia, não pode haver fé como simples crença,  ou só certeza mental da própria salvação ou pura atitude intencional interior. Somos “espíritos encarnados”, como dizia o filósofo francês existencialista cristão Gabriel Marcel. Ou seja, somos uma corporeidade (concentração específica de energia cósmica) que tem consciência de si e do mundo a seu redor. Não somos puros espíritos, somos um corpo capaz de conhecer, desejar, amar e projetar o futuro. Daí que as obras de amor sejam elas mesmas a própria fé em atos, são o “corpo” da fé. A ação humana, na verdade, não é outra coisa senão o ser inteiro da pessoa que se manifesta e, ao mesmo tempo, se constrói. Somos e nos tornamos mais enquanto nos “simbolizamos”, nos exteriorizamos. Por isso, opor fé e obras tem sido lamentável equívoco. Discipulado é assumir o “preço”  dos gestos e obras de Jesus, que são agora obras de Deus praticadas por nossas mãos. É esse “preço” do discipulado (cf. Mc 8, 34-38)  que Bonhoeffer designa como “graça preciosa”, que sintetiza a ação divina e nossa tarefa de ser “colaboradores da obra de Deus” (1Cor 3, 9). Lutero dizia que as obras não nos justificam diante de Deus, mas isto não quer dizer que não tenhamos de praticar boas obras, pois, dizia, “a fé nem se pergunta se deve praticar boas obras, ela as faz naturalmente”.   De fato, a fé acontece, não por belas palavras que confessam crer, mas mediante o cumprimento obediente da vontade de Deus, em atos pelos quais somos veículos da graça transformadora  da vida de outras pessoas (cf. Mc 3, 31-35; Lc 11, 27-28). É outra maneira de formular o círculo graça-gratidão-gratuidade, ou seja, a maneira de reconhecer a obra de Deus em nós e render-Lhe graças, é  tornar-se graça para outrem e para o mundo.

GLORIFICAÇÃO: A ressurreição é a plenificação da caminhada da fé e do processo de recriação do ser humano e do universo. O Novo Testamento é enfático em afirmar que se trata da plena manifestação do que já tinha começado “no início da fè” (e no Batismo), como nos ensinam particularmente São Paulo e São João (cf. Rm 6, 3-14; 1Jo 3, 1-2). Não se trata simplesmente de “reviver” da morte e passar a viver eternamente. Ressurreição, nas Escrituras, é a consumação da criação, a plenitude da obra do Espírito começada na justificação e a plena revelação do poder de Deus e da verdade de Sua aliança com a humanidade, a plena revelação de que, para além de “eu”, somos um “nós” (cf. 2Mc  7, 20-38; Rm 8; Ap 21-22).

Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….
É Teólogo e Biblista
Assessor do CEBI, de lideranças de Comunidades Eclesiais de Base e de Escolas de Fé e Política

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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