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O mundo inteiro já sabe que o projeto mais profundo do atual governo federal brasileiro é exterminar de vez todos os povos indígenas do Brasil. Diariamente, através de latifundiários, garimpeiros e madeireiros, o governo ataca impiedosamente aldeias e ameaça a vida de índios em todos os estados brasileiros. Nestes dias, a mais eficiente arma desta guerra do ódio tem sido o Coronavírus. Dos 305 povos indígenas em contato com a sociedade dominante, até o final de junho, 101 povos tinham pessoas contagiadas. Nas aldeias indígenas, o contágio chega a 84% acima da média nacional. Em vários povos, como os Xicrim no Pará e os Guarani Kaiwá no Mato Grosso do Sul, o contágio atinge proporções de epidemia. No entanto, como para todos os brasileiros, a maioria das mortes não se deve apenas ao vírus e sim ao descuido, desatenção e falta de tratamento, provocados pela atitude irresponsável e cruel do governo.
Diante disso, muita gente se pergunta o que as Igrejas cristãs, principalmente a Igreja Católica tem feito para atuar em favor da vida e defender as comunidades indígenas. Em 2019, o papa Francisco, junto com bispos e missionários/as de todo o mundo, reunidos no Sínodo para a Amazônia, propuseram uma evangelização baseada no diálogo respeitoso e no reconhecimento da presença divina em todas as religiões e culturas.
De fato, essa postura é nova como posição de um papa e de grande parte dos pastores, missionários e missionárias que atuam na região. Durante séculos, desde os tempos da colonização, as Igrejas confundiram missão com conquista. No lugar de testemunhar o evangelho de Jesus, serviram aos interesses dos impérios. As principais vítimas desse sistema foram os povos originários que há milênios vivem nesse continente. No entanto, sempre houve uma minoria de cristãos e pastores que defendia a causa indígena. Marginalizados pela cúpula eclesiástica e perseguidos pelo Império, insistiam: a missão não pode estar ligada à colonização.
Em toda a América Latina, 17 de julho lembra o falecimento da figura mais conhecida que defendeu essas posições. Foi Bartolomeu de las Casas, missionário dominicano em Santo Domingos e, depois, primeiro bispo de Chiapas, no sul do México. Entre os missionários europeus, foi o primeiro e grande defensor da dignidade dos índios contra o sistema colonizador e escravagista. Ele tinha vindo da Espanha para a América no começo da colonização para ser senhor de escravos. No entanto, ao ver o sofrimento dos índios, se converteu e se tornou missionário e teólogo para lutar contra a escravidão. Defendeu a dignidade dos índios e escreveu o primeiro tratado de teologia e espiritualidade que ensina: nos corpos dos índios escravizados, é o próprio Jesus Cristo que é explorado.
Atualmente, quase cinco séculos depois, podemos lamentar que ao protestar contra a escravidão indígena, Las Casas não tenha sabido denunciar o próprio sistema colonizador em si mesmo. Há quem o acuse de ter aceito o tráfico e a escravidão dos africanos para substituir os índios nas minas e engenhos da colonização. Não há provas disso. O tráfico de africanos sequestrados para ser escravos na América floresceu mais a partir das últimas décadas do século XVI, quando Bartolomeu de las Casas já tinha morrido. Seja como for, mesmo com contradições inerentes à época, até hoje, os escritos desse grande missionário são referência para nova concepção de missão e de leitura da história a partir das vítimas.
Nestes dias, a Netflix disponibiliza para acesso a primeira temporada da série A índia Catalina, figura mítica, fundadora da cidade de Cartagena de Índias, na Colômbia. Uma das personagens da série que aparece em vários capítulos é o frei Bartolomeu de las Casas. Apesar de mostra-lo como homem bom e amigo dos índios, o apresenta como funcionário do vice-reinado, o que nunca ele aceitaria ser.
No decorrer da história da Igreja, o modelo de missão inspirado na espiritualidade social libertadora se tornou conhecido como “lascasiana”. Hoje, a espiritualidade lascasiana rejeita qualquer intento de missão que tenha como objetivo conquistar adeptos para a fé. Só a fé vivida como diálogo valoriza a presença divina em toda realidade humana e respeita a diversidade das culturas. A memória de Las Casas nos chama a defender a vida e a liberdade dos índios por motivos humanos e sociais e por exigência espiritual da fé. Não podemos aceitar projetos de desenvolvimento que não levem em consideração o respeito aos povos indígenas e suas culturas. Em um diálogo com os índios, na cidade de Puerto Maldonado, na Amazônia peruana, em janeiro de 2018, o papa Francisco pediu aos líderes indígenas que ajudassem a formar uma Igreja com rosto amazônico e indígena. Que a memória de Bartolomeu de las Casas nos ajude neste caminho.
Obs: O autor é monge beneditino e teólogo católico é especializado em Bíblia e assessor nacional do Centro Ecumênico de Estudos Bíblicos, das comunidades eclesiais de base e de movimentos populares.
É coordenador latino-americano da ASETT (Associação Ecumênica de Teólogos/as do Terceiro Mundo) e autor de 57 livros publicados no Brasil e em outros países. O mais recente é Teologias da Libertação para os nossos dias (Vozes).