Indignado com o silêncio de Deus perante tanta injustiça no mundo, um homem entrou em uma igreja e perguntou: “Por que o Senhor não faz nada diante de tanta maldade no mundo?” Deus respondeu: “Já fiz. Fiz você”.
Incomoda-nos o silêncio de Deus, tema recorrente na obra magnífica de Carlos Heitor Cony. Até o papa Bento XVI, ao visitar Auschwitz, em abril de 2010, exclamou: “Por que, Senhor, permaneceste em silêncio? Como pudeste tolerar isto? Onde estava Deus nesses dias?”
Albert Camus concluiu que ou Deus é onipotente, mas é mau, ou é bom, mas impotente. De fato, paira a indagação se Deus deserdou a humanidade ao se constatar tantas atrocidades: de Auschwitz a Hiroshima; do genocídio indígena na América Latina ao uso de drones made in USA que, no Oriente Médio, provocam destruição e mortes até mesmo em hospitais de campanha dos Médicos Sem Fronteiras. Hordas de imigrantes promovem um novo êxodo rumo a países ditos cristãos e estes, horrorizados, fecham suas fronteiras e seus corações.
Deus faz silêncio na vida de tantos adultos que, na infância, creram nele e, agora, nas pegadas de Nietzsche, o descartam como uma ilusão destinada a tentar compensar na vida além da morte o sofrimento inexplicável nesta existência.
Como Deus pode existir se há tantas crianças condenadas à fome, a doenças incuráveis, à crueldade dos adultos?, perguntava Betinho, meu companheiro na Ação Católica. E aqueles que nele creem são mais éticos e justos do que os ateus? As maiores atrocidades da história foram cometidas por nações que se consideram predominantemente cristãs, como a Inquisição, o colonialismo, a escravatura, o nazismo e as duas grandes guerras.
Ora, quantos cristãos enchem a boca com o nome de Deus, e inclusive o bolso graças a ele, e trazem o coração repleto de ira, ódio, vingança e preconceitos! Quantos exploram a boa fé do rebanho de fieis para extorquir, corromper e multiplicar seus negócios, e ainda prometem o Inferno a quem os denuncia
Até Jesus experimentou o silêncio de Deus: “Meu Pai, meu Pai, por que me abandonaste?” (Marcos 15, 34). Em dois ou três períodos de minha vida, como na prisão sob a ditadura civil e militar, também indaguei onde Deus se escondia.
Não é a fé em Deus que importava para Jesus. A fé é um dom, e muitos não o receberam. O importante para ele era se a pessoa vivia, ainda que sem fé, os valores humanos (que coincidem com os valores evangélicos): amor ao próximo, justiça aos oprimidos, solidariedade, tolerância e compaixão. Quem assim age faz o que Deus espera de cada um de nós.
Por isso Jesus enfatizou que muitos que não creem e abraçam tais valores haverão de perguntar do outro lado da vida: “Quando te vimos com fome e te demos de comer?” E o Senhor dirá: “Todas as vezes que fizeste isso ao menor dos meus irmãos, a mim o fizeste” (Mateus 25, 37-40).
Jesus não veio fundar uma religião ou uma Igreja. Veio nos propor um novo projeto civilizatório, baseado no amor e na justiça – a globalização da solidariedade, como definiu o papa João Paulo II. No reino de César, ele pagou com a vida o fato de anunciar um outro reino, um “outro mundo possível”, o de Deus. Não, como muitos pensam, situado apenas do outro lado da vida, mas aqui e agora, e cujo protótipo ele encarnou. Por isso nos ensinou a orar: “Venha a nós o vosso Reino”.
O modo de entender a presença de Deus em nossas vidas depende da ideia que temos de Deus, como o demonstra a emblemática história de Jó, cujos amigos, inconformados diante daquela fé inabalável, o instigavam a repudiar Deus que o fazia sofrer.
Certa vez, indignado com o silêncio omisso de Deus perante tanta injustiça, um homem entrou em uma igreja vazia e, junto ao altar, pôs-se a gritar: “Tanta maldade no mundo, e o Senhor não faz nada? Não reage à violência, à miséria, a tanto sofrimento de suas criaturas?”
Deus quebrou o silêncio e respondeu: “Eu já fiz.”
“Como já fez? Fez o quê?”, indagou o homem revoltado.
“Fiz você”, disse Deus.
Obs: Frei Betto é escritor, autor de “Reinventar a vida” (Vozes), entre outros livros.
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