No início, o perigo vinha do céu. Tempo da segunda guerra. A noite, escuridão total nas cidades, para se precaver de bombardeios dos alemães. Nenhum sinal de luz poderia aparecer. A vigilância policial atenta. A escuridão, geral. Para se acender uma lâmpada, necessário que ocorresse em local fechado, para não deixar a cauda de fora. Muito ouvi essa ladainha. Mas, sou do tempo em que o perigo saia da sujeira dos galinheiros, o mosquito danado provocando um enjoo miserável, batizado pela alcunha de dengue, que tive, os olhos virando, a parte do branco desaparecendo, um suor a dar a impressão de que a pessoa tinha saído do banho sem se enxugar. Me tornei vítima e fui para a cama, fraqueza no corpo inteiro, apetite abaixo de zero. Sobrevivi.

Agora vem da boca, do contato, da secreção, passageiro de avião, a pegar em um e contaminar centenas, e, assim, sucessivamente, invadindo países e continentes, sem precisar de passaporte nem de comprar passagem, nem de reserva de hotel, escondido no passageiro, que se torna o elemento a difundi-lo, as estatísticas diuturnamente a exibir novos números, entre os afetados e os suspeitos, as medidas sendo tomadas, o homem, finalmente, descobrindo que o lugar mais seguro é a sua casa. Não é a bomba alemã que faz medo, não é o galinheiro que exibe sujeira.  O mal evoluiu. Ficou invisível. No momento, pelo que já foi divulgado, só não gosta do calor forte, o que significa, por outro lado, que não veio do inferno.

Estamos, suspeitos, confirmados e assustados, no mesmo barco, torcendo e rezando, para que o mal fique bem longe, não dê as caras, vá embora, usufruir de boas e eternas férias em desertos de muito calor, e, se possível, em outros planetas, já indo tarde, não precisando nem apagar a luz do aeroporto, muito menos de abraços de despedidas. Por ora, ouvido no rádio, olho nas mensagens que nos chegam, conselhos de solidão que devem ser acatados, higiene total, a começar pelas mãos, nada de reunião, de aglomerados, de ambiente apertado. Ufa! Mais cedo ou mais tarde, passa. Aí tudo volta a ser alegre, vestindo azul para a sorte mudar. Enquanto isso, um amigo, que sempre viveu afundado no pessimismo, concorda comigo. Então, num riso largo, sentencia: quem sobreviver, conta a história. Cruz credo! Dei o diálogo por encerrado. (Diário de Pernambuco, 21 e 22 de março de 2020)

Obs: Publicado no Diario de Pernambuco
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Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras
  

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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