Vez por outra o médico é chamado para realizar uma consulta domiciliar. É um procedimento frequente em feriados e finais de semana, devido à cultura local de que os médicos plantonistas são recém formados, portanto sem experiência. A maior parte dos atendimentos são casos de baixa complexidade: pessoas com deficiência de locomoção, episódios de enxaqueca, lombalgia e doenças crônicas em fase terminal.

Em casa, recebem um tratamento personalizado, diferenciado, mais humano e junto ao conforto da família. O médico convocado é normalmente conhecido e reconhecido pela competência no desempenho profissional, pela fama de transmitir segurança e doar um pouco de si mesmo aos seus pacientes.

O caso clínico em questão foi inesperado. Era uma adolescente de 15 anos, com dor abdominal e sangramento vaginal havia 8 horas, com histórico de dez semanas de atraso menstrual. A dor não se modificava pelo uso de analgésico e quando a paciente ficava de pé apresentava tonturas, náuseas, turvação visual, formigamentos e desmaio, entretanto, recobrava a consciência logo a seguir, quando deitava.

Estendida na cama, expressava sofrimento, olhar sem brilho e sonolento, pele pálida e coberta por sudorese fria, dedos e lábios com discreta cianose, pulso fraco e rápido, respiração curta e superficial com vinte e seis respirações por minuto, coração muito ligeiro batendo 130 vezes a cada minuto e pressão arterial baixa em torno de 50/30 mmHg. Movimentava-se desconfortavelmente com ajuda da mãe. O contorno do seu abdome mostrava em sua parte inferior uma pequena elevação que, ao ser comprimida, fez com que a paciente expressasse uma careta de dor e imediatamente retirasse minha mão do local. A observação foi concluída.

Tem havido um interesse recente em redefinir e às vezes descartar métodos tradicionais de exame clínico após o surgimento da ultrassonografia, tomografia computadorizada, ressonância magnética e outros exames de imagem, suprimindo a satisfação e o prazer intelectual de se fazer o diagnóstico usando o aprendizado desarmado. A medicina é ciência e arte, e atitudes humanísticas como ouvir, olhar e tocar são fundamentais para separar o trigo do joio. O olho bem treinado é capaz de reconhecer a gravidade do estado de saúde do doente e o que existe por trás dele. A dor abdominal é uma das queixas mais frequentes nas consultas de urgência e quando constitui um grande desafio, utilizamos as armas disponíveis.

A condição clínica era compatível com sangramento excessivo produzido por uma gravidez ectópica rota. Uma gestação complicada pela localização fora do útero, muitas vezes associada à inflamação pélvica, endometriose e uso de DIU, e que termina quase sempre em emergência médica. A demora agrava a cada instante o risco à vida da paciente. A intervenção e tratamento imediatos são fundamentais e minha maleta continha apenas aparelho de pressão, estetoscópio, termômetro, martelo, otoscópio e alguns remédios.

Apesar de minhas afirmações entusiasmadas, a palavra gravidez causou uma perturbação súbita no ambiente e a situação tornou-se mais grave por significar que houve sexo e perda de virgindade. O pai cuspiu rejeições em minha cara: “Minha filha é evangélica, pura e sem nódoas. Não é uma desavergonhada fácil. Ela é comprometida com o Senhor e com ela mesma”. No âmbito religioso, o mito da virgindade feminina está presente na sociedade há muito tempo. Ela deve ser mantida até a mulher encontrar o homem certo e concretizar o casamento.

A virgindade do homem é pouco discutida. No ambiente científico, sabe-se que nosso corpo sofre modificações continuamente. A testosterona masculiniza os meninos e o estradiol dá feição feminina às meninas. Esses hormônios associados a fatores psicossociais despertam impulsos e excitação para masturbação e intercurso sexual. Os desejosos e os prazeres corporais não são maldições. É uma maldade cruel exigir que o jovem desarme os desejos sexuais que a natureza faz aflorar de dentro de si para agradar a Deus. Agravei a ferida quando falei em transfusão de sangue e intervenção cirúrgica. A mãe, ansiosa e desesperada, deu um chilique e foi socorrida com algodão embebido por álcool nas narinas e ouvi preces, orações e cantos sacros. A fé é irracional e alimenta o espírito dos ingênuos, mas todos são livres para amar a ciência e amar a Deus. A família acreditava que uma vida não valia a pena ser vivida se não fosse de acordo com a ética religiosa e posicionou-se contrária às determinações sensatas e humanas de quem pensava em salvar uma vida. Houve um levante inquietante no ambiente com empurrões entre vizinhos, padrinho e os pais da paciente. A recusa, por razões religiosas, de uma transfusão de sangue, é compreensível e trata-se de uma briga entre o direito à vida e à liberdade de escolha. Em 18 de Novembro de 1978, cerca de 918 pessoas tiraram as próprias vidas, estimuladas pelo pastor Jim Jones. Morreram com a bíblia na mão e Jesus Cristo no coração. Nos limites entre a vida e a morte, a ciência resolve sem necessidade de intercessão divina.

Durante o curso superior, estudei com muita atenção a influência de Deus e do Diabo sobre as doenças e aprendi a admirar Esculápio, que teria vivido em torno de 1200 a.C. Ou, para outros faria parte do panteão da mitologia grega. Filho de um pai divino e de uma mãe mortal e virgem, casada com homem mortal.  Em seu nascimento ocorreram coisas sobrenaturais e foi achado por um pastor cercado por luz divina. Sua vida pura foi dedicada ao socorro da humanidade: restituía visão a cegos, a audição a surdos, a fala a mudos, curava epiléticos, paralíticos e ferimentos nos guerreiros. Foi punido e sacrificado por ressuscitar mortos. Vários de seus santuários foram incorporados e transformados em Igrejas Cristãs. Esculápio foi o DVD original. Hoje, os piratas dominam o mercado da fé. A ingenuidade dos pais e o estado crítico da filha, estimularam minhas decisões.

Ela, quase sem forças, segurava a minha mão e não me deixava soltá-la. Seu olhar aflito e fixo me pedia socorro para sua dor. À revelia dos pais, a adolescente foi arrebatada do alvoroço e levada ao hospital. Duas semanas após a alta hospitalar a adolescente, acompanhada do padrinho, foi ao meu consultório para agradecer minha intervenção.  Aracaju, 05/05/2020

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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