Para quem acaba de sair da universidade, o sucesso profissional tem início quando se começa a trabalhar com dedicação. É preciso reconhecer os pontos nos quais efetivamente temos sólidos conhecimentos e as lacunas que ainda precisam de complementos. É fundamental preencher esses espaços, porque uma marca não se constrói da noite para o dia. Quase sempre exige uma dose elevada de paciência, motivação, muito esforço e aprendizado contínuo para ver um sonho de infância se transformar em algo concreto. A correria do dia a dia às vezes nos deixa a uma distância considerável do retorno desejado.

Depois de muitos anos sob intenso estresse físico, mental e psicológico, envolvido nos limites estreitos entre a vida e a morte de pacientes graves, o médico precisa de um momento tranquilo, sem tanta coisa dolorosa para ver e tantas outras coisas por fazer, a fim de equilibrar suas emoções. A solução fácil é quase sempre descobrir novos lugares, respirar outros ares, dormir e acordar sem preocupações cotidianas. Viajar para congressos expande nossos conhecimentos científicos, mas viajar a passeio traz apenas conhecimentos superficiais.

Não me servia de inspiração a ideia de conhecer ao vivo a Torre Eiffel, a Torre de Pisa, Palácio de Buckinghan, o Monte Athos, o Templo de Poseidon e a Missa do Papa. Sei que a maioria de nós é induzida a cantar “Eguinha Pocotó”, mas sempre encontrei dificuldades de me enquadrar nesse mundo. Daria um mergulho através de diferentes eras da história e comtemplaria coisas visualmente belas, deslumbrantes e grandiosas para todos os níveis de sabedoria, mas, não sei se seria diferente de dar uma volta no quarteirão onde moro. Nenhuma das alternativas ajudaria no alívio da dor daqueles que me procuram. A ciência é a verdade e a luz para melhorar a qualidade de vida da humanidade e o velho continente precisa dividir com a África e a América Latina conhecimentos técnicos profundos em vez de nos expor arrogantes castelos feudais e luxuosas igrejas, que atraem tantos fieis, ornamentadas de ouro e prata.

Após pesar os prós e os contras, aprontei a mala de mão em dez minutos e a convite de um amigo fui conhecer Argentina e Chile. A viagem é extremamente desconfortável e somos obrigados a inúmeras exigências e proibições: chegar duas horas antes do embarque, tirar os sapatos, cinto, relógio, passar no raio-x, sentar em poltronas apertadas, ouvir instruções de segurança que ninguém assimila com facilidade e que parecem não salvar vidas.

Para o show de tango, comprei uma roupa vistosa, mas havia a necessidade de fazer a bainha. O vendedor fez-me a indicação do lugar. Dificilmente alguém recomenda uma pessoa na qual não confia. No endereço, uma rua estreita, adentrei numa sala térrea de aproximadamente 18 m² num prédio de quatro andares. Abriu-me a porta uma senhora aparentando 80 anos, com passos pequenos, lentos e arrastados que mal saiam do chão. Fez esforço para levantar o braço ao cumprimentar-me e quando se aproximou senti o cheiro de algum perfume e de cigarro. Seu rosto revelava pobreza de expressão, pálpebras inchadas, olhos úmidos e cabelos pintados em cinza claro. Obesa, com barriga volumosa lembrando a curva de um arco de jogar flechas. Pernas, pés e dedos inchados, algumas varizes superficiais, pele grossa com manchas ocre e cicatrizes de feridas. Apresentou dificuldades para tirar as medidas, sentar e levantar.

O pequeno ambiente havia sido transformado num apartamento conjugado de três cômodos, separados por cortinas feitas de retalhos de tecido de várias estampas, percebendo-se nódoas de gorduras nos locais manuseados.

No espaço reservado ao trabalho, uma máquina de costura, embalagens com linhas de várias cores, alguns frascos com botões, duas prateleiras com poucas encomendas e o chão com aspecto encardido por poeira e restos miúdos de pano.

No segundo cômodo, uma cama velha enferrujada, com marca de corpo no colchão e sobre ele um travesseiro, um cobertor e uma toalha. Um pequeno banco e uma TV velha completavam o ambiente. No último compartimento: um fogão com frigideiras, uma pequena geladeira e o arcabouço de uma máquina de costura que servia de mesa e pratos com restos de comida, disputados por algumas moscas. Entretanto, o grande destaque do seu pequeno conjugado eram suas paredes, completamente revestidas por recortes de revistas. As fotografias, em sua maioria em preto e branco, revelavam a força do olhar, a beleza dos traços, o sorriso expressivo de felicidade e a postura de uma socialite sensual. A sequência da exposição mostrava, com riqueza de detalhes, o reinado de uma mulher jovem muito importante, nas capas das revistas Radiolandia, Tv Guia, Vosotras, Para Ti e Seventeen e em diversos jornais como La Nación e Clarin. Nas fotografias mais bonitas, fazia propaganda de joias, bolsas, sapatos e acessórios das marcas Cartier, Bulgari, Louis Vuitton e Dior.

Meu instinto curioso e indiscreto queria sentir o sabor, o gosto e a satisfação de saber quem era a mulher do outdoor doméstico e indaguei à costureira: é alguma atriz famosa? A pergunta foi de longo alcance e produziu uma explosão instantânea de recordações. Interrompeu o trabalho, ficou imóvel por alguns segundos, seus olhos molharam o rosto e sua mão vagarosamente e trêmula bateu em seu peito várias vezes. Filha de pais ricos, herdara uma grande fortuna, quando já era a mais famosa estilista da Argentina. Possuía imaginação e criatividade sem igual e suas roupas eram verdadeiras obras de arte. Vestia as celebridades do país com exclusividade e ao estilo de Hollywood. Sua liderança era tão forte dentro da alta sociedade, que tudo que falava ou fazia era considerado excepcional e a elite seguia.

Frequentou salões e pátios de palácios, mansões em Manaus, Belém, São Luiz e Rio de Janeiro, acompanhando seu irmão, médico e professor conceituado, que veio ao Brasil a pedido do amigo Getúlio Vargas para auxiliar o governo no combate à Malária e Febre Amarela.

Os bons sonhos não são eternos e ruim é despertar no meio de um deles. Não estava preparada para lidar com a fortuna que tinha em suas mãos e quando esbanjava euforia não conseguia controlar seus impulsos: fazia a cada ano duas viagens a Londres, Paris e Roma; comprava joias de ouro, brilhantes caros, carros de luxo e promovia festas suntuosas. A concepção exagerada de sua riqueza não lhe deixava perceber que para manter-se no paraíso, gastava muito mais do que devia. A desigualdade social impõe condições de vida muito distantes para ricos e pobres e o dinheiro sempre foi o melhor meio para conseguir o que se deseja na vida, e também após a morte, quando Deus aceitava indulgências (propinas) para quebrar o galho dos pecadores.

Atualmente, devido à condição de extrema pobreza, mora em um local impróprio para uma vida humana, com feridas sociais graves sangrando na alma. Sem família, sem amigos, sem olhares, holofotes ou flashes e sem renda suficiente para as necessidades básicas. Vive tomada pela sensação angustiante de não pertencer ao mundo que a cerca. As palavras saíam de sua boca sem força, quando me disse: “não é fácil mudar, abdicar de prazer, conforto, e aceitar a exclusão de tudo que há de melhor e adaptar-me à miséria e a solidão. Agora, ao nascer de cada dia, aguardo ansiosa aparecer uma calça para fazer bainha ou pregar botão”.
Aracaju/SE 22 de Abril de 2020

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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