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No final das contas, o vírus e a quarentena não implantaram a “centelha do mal” nas pessoas, apenas potencializaram esses conteúdos dentro de cada um, seja nas suas perversidades, seja na sua incapacidade de suportar o outro. É muito difícil admitirmos que esse “mal” não está fora e sim dentro da gente.
Diante da escuta do analista, as frases flutuam consultório adentro: “Não me reconheci naquela situação”, “aquela pessoa ali, não era eu”. Eis um pressuposto humano carregado de angústia: a consciência de que existe um Eu estranho que nos habita e que nos escapa e, ainda, que esse Eu desconhecido aponta para uma indigesta verdade humana escrita por Freud: “não somos donos da nossa própria casa” (psíquica).
Por outro lado, esse mesmo Eu também revela uma energia criativa e uma coragem desconhecida, isto é, uma teimosa pulsão de vida que não nos faz desistir apesar dos pesares.
Em tempos incertos de pandemia, crise social e econômica, esse nosso Eu é descoberto mais agudamente, seja para a nossa desgraça ou alegria. O termo des-cobrir é apropriado, pois nos mostra que esse conteúdo estranho à nossa consciência já existia de alguma forma, porém estava coberto, escondido.
Em meio a esse pandemônio viral vemos de tudo: os que potencializam seu egoísmo ou a sua solidariedade, os defensores de teorias conspiratórias das mais absurdas e, ainda, pessoas que acreditavam ter uma saúde mental adequada, mas que estão “surtando” (com motivo) nesse novo mundo que se apresenta, ou melhor, esse que chega sem avisar.
Dentre os golpes desferidos pelo novo coronavírus aos seres humanos, um em especial nos força à reflexão de nossa história até aqui, sobre como a estamos vivendo. O tão criticado e também defendido isolamento social, nos forçou a voltar não apenas para a nossa casa física, mas também para onde moram nossas neuroses e nossas potências, isto é, nossa casa psíquica.
Simbolicamente, voltar para a casa pode ser uma experiência de voltar para si mesmo, de se haver com o que construiu dentro e fora de si, incluindo as escolhas que fez ou abandonou durante seu percurso de vida.
Esse estranho que reside em nós aparece nas demandas cotidianas, mas devido a uma correria desenfreada de atividades e agendas, talvez não houvéssemos percebido antes. Por isso que nesse tempo de quarentena, possivelmente nos percebemos mais ansiosos, mal humorados ou deprimidos. Estamos mais tempo juntos e fomos “obrigados” a conviver junto a um outro que também tem dentro de si esse Eu estranho sendo posto à prova.
Na China se constatou um aumento considerável de divórcios e, na cidade de São Paulo, o número de feminicídio dentro de casa dobrou, e como se não bastasse, especialistas temem aumentar também o número de abuso infantil nos lares brasileiros.
No final das contas, o vírus e a quarentena não implantaram a “centelha do mal” nessas pessoas, apenas potencializaram esses conteúdos dentro de cada um, seja nas suas perversidades, seja na sua incapacidade de suportar o outro. É muito difícil admitirmos que esse “mal” não está fora e sim dentro da gente.
O isolamento social e os desdobramentos inerentes a ele nos devolvem algumas perguntas custosas de se responder: está valendo a pena a escolha de dividir a minha vida na companhia dessa pessoa/família? Quem e como sou na relação familiar? Ou ainda, para os que optaram por morar sozinhos, estão apreciando essa vivência de solitude?
Nesses dias difíceis estou me colocando à disposição para a escuta online de amigos, pacientes e familiares. E mesmo que legítimas as preocupações ligadas à própria saúde e à falta de dinheiro, o que transborda na escuta é o questionamento e reflexão da vida que se tem vivido, e quem é esse estranho aos pouco revelado, que nos mostra uma face que lutamos para escondê-la.
Quem sou eu na pandemia e no caos instaurado? Sou o que estoca infinitos rolos de papel higiênico, ou sou aquele indignado que se solidariza e divide o que tem? Sou aquele que em tempos sombrios elabora ações criativas para ajudar a sua cidade, ou sou aquele irresponsável e acomodado que passa o dia compartilhando Fake News nas redes sociais? As perguntas e os questionamentos borbulham e ocupam apenas a cabeça dos mais sensíveis, dos mais perceptivos de si.
Sem dúvida, entramos em um novo mundo. Para um tempo mais criativo e humano, que tenhamos coragem de conviver/enfrentar o estranho que nos habita, seja no período de quarentena ou na vida toda. Existe beleza e esperança até no caos. Convoco Chaplin para nos elucidar: “Não devemos ter medo dos confrontos, até os planetas se chocam e do caos nascem as estrelas”.
Obs: O autor é Psicólogo, palestrante, terapeuta de família casal.
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