(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio,
decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio *)
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O mundo parou e olhou para Minneapolis quando um homem negro, George Floyd, arfou com o pescoço esmagado pelo joelho do policial branco Derek Chauvin. Floyd gemeu e balbuciou que não podia respirar. Depois disso, calou-se para sempre. Em poucas horas, um país inteiro estava de pé. E o mundo se indignava e chorava sua morte.

Enquanto Floyd era assassinado pela violência racista, em muitos leitos de hospital mundo afora doentes de todas as raças, culturas e nacionalidades padeciam a asfixia nos respiradores das UTIs, acometidos do terrível vírus que virou a vida da humanidade pelo avesso.  A Covid-19 se apodera dos pulmões daqueles e daquelas a quem atinge e os leva à morte por asfixia, a mesma morte que vitimou Floyd.

Lutando pelo ar estão os doentes de Covid-19; lutando pelo ar morreu George Floyd ao implorar que o deixassem respirar. A desordem instalada pelo vírus nos corpos prostrados e sufocados pelo coronavírus tem metafórico paralelo com o corpo do homem negro assassinado em Minneapolis por outro vírus: o do racismo.

O racismo é filho da escravidão.  Bem o lembrou Ronilso Pacheco, meu assistente de pesquisa na PUC-Rio e atualmente mestrando do Union Theological Seminary, em Nova York.  Falando à Globonews, disse tratar-se de um problema não pessoal, mas estrutural. É todo um sistema que se deteriora corroído pela praga do racismo que divide os seres humanos de acordo com a cor da pele.

 A forma como Floyd foi assassinado é reflexo direto de uma segregação branca, que mergulha suas raízes na escravidão.  Aí o negro é uma mercadoria, um instrumento de produção, que pode ser vendido, dominado, agredido, escravizado. A frieza com que o policial branco fincou seu joelho sobre o pescoço da vítima, com as mãos no bolso,  demarca a posição da supremacia branca em relação aos negros:  dominação que escraviza. E  mata,  esmagando a função mais vital do outro enquanto ser humano: sua possibilidade de respirar. Mata bloqueando a possibilidade de o ar entrar em seus pulmões.  Mata produzindo a asfixia.

O vírus que gera a pandemia e põe em perigo a humanidade pode atingir qualquer um. Quando ataca, não faz distinção entre ricos ou pobres, negros ou brancos.  Porém, a evolução da doença desvela diferenças e desigualdades de uma clareza desconcertante. Os que têm acesso a tratamento, hospitais equipados, leitos e unidades de tratamento intensivo carregam muito mais chances de sobreviver e retornar à vida interrompida pelo vírus.  Os que dependem dos hospitais públicos, muitas vezes sem vagas, sem leitos, sem respiradores, estão muito mais vulneráveis à asfixia mortal que os atirará à vala comum onde os governos, atônitos e sobrecarregados, depositam os cadáveres que não dão conta de enterrar. Entre estes, nos Estados Unidos e no Brasil, os negros são maioria.

Padecemos de ambos os vírus. O racismo brasileiro é mais velado que o estadunidense.  Mas por isso mesmo de uma violência perversa e disfarçada.  Enquanto ao norte do continente, milhares de pessoas vão às ruas quando um negro é sufocado por um policial branco, aqui os muitos negros que morrem diariamente sob a violência policial e como vítimas da injustiça se tornam estatísticas sem nome nem endereço. George Floyd entrou para a história universal a partir de sua morte.  Mas quem se lembrará daqui a pouco tempo quem era João Pedro, o adolescente de 14 anos assassinado em sua casa, em São Gonçalo, RJ, com vários tiros nas costas?

 Em ambos os casos, trata-se de países que carregam um longo período de escravidão com fim dilatado e tardio. As sequelas dessa dominação se fazem sentir de muitos modos, sempre asfixiantes, sufocantes, interruptoras de vidas, sonhos e alegrias. Não à toa os pacientes negros constituem a maioria das vítimas da Covid-19 tanto nos Estados Unidos como no Brasil. Lá como aqui, as vidas negras parecem não contar.  E não conseguem respirar a plenos pulmões o ar da liberdade e da plenitude.

Os governantes de um e de outro país costumam citar a Bíblia para respaldar suas políticas públicas que voltam as costas à gravidade da crise sanitária e minimizam atos racistas, como os de Minneapolis e de São Gonçalo. Seria bom recordar-lhes que quando Deus criou o céu e a terra fez também o ser humano, para que em sua finitude feita de perecível barro, fosse repleto do Espírito divino.  Esse ar que encheu as narinas e o corpo de Adão encontra sua analogia nas Escrituras Sagradas com o sopro divino que dá a vida e é livre,  não se sabendo de onde vem nem para onde vai.

Os vírus do racismo e das injustiças de toda sorte asfixiam o Espírito de Deus, que é de vida e não de morte; que engendra o mundo do nada; que transforma a argila perecível da qual somos feitos em corpo animado e destinado à plenitude. As vidas negras valem. Todas as vidas valem.  Nenhuma é destinada à asfixia de qualquer sorte.

Obs: Maria Clara Bingemer é  autora de “O mistério e o mundo”  (Editora Rocco), entre outros livros.

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