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A doença e a morte estão vindo de roldão, por atacado. E causam dor, terror, medo e pânico. Não que não soubéssemos da sua existência. Afinal, quem nasce, um dia vai morrer. Ocorre que agora, com o coronavírus, ela se mostra tão iminente e aterradora como talvez ainda não tenhamos experimentado. O que fazer diante dessa realidade? É a pergunta que está no ar mundo afora. As respostas e consequências têm sido as mais diversas possíveis.
Mas, enquanto a pandemia, associada a muitas outras causas, continuam retirando o sopro da vida de tantas pessoas, não podemos deixar nossa razão, nossa consciência e nossos sentimentos caírem na indiferença, no individualismo suicida e genocida, na descrença e no desespero. É preciso agir com os instrumentos que temos e construir outros que possam ser eficientes. E, todos/as nós podemos fazer algum gesto solidário. Afinal, solidariedade gera solidariedade, do mesmo modo que “gentileza gera gentileza”, como disse José Datrino (Profeta Gentileza).
Tomo a liberdade para relatar aqui uma simples experiência com a qual estou envolvido. Ano passado, a Campanha da Fraternidade promovida pela Igreja Católica nos convocava para ações vinculadas às políticas públicas. Pensando nisso, elaboramos um projeto a fim de pleitear recursos do Fundo Nacional de Solidariedade, constituído com dinheiro da coleta da Campanha da Fraternidade. Obtivemos carta de recomendação do bispo local e o projeto intitulado “Educando para a Cidadania” foi aprovado. Em seguida o recurso foi enviado para dar início ao trabalho.
O projeto consiste num curso de 10 meses, com encontros semanais para 30 catadores/as que trabalham e vivem do lixão da cidade (agora se transfigurando em aterro sanitário). Os encontros acontecem na casa de uma agente de saúde, gentilmente cedida para essa finalidade. Todos os domingos pela manhã, catadores/as, um grupo de crianças (seus filhos), se reúnem com coordenadores/as voluntários do projeto e educadoras. Ali acontecem trocas de experiências, partilhas de dificuldades e sonhos. Ensina-se e aprende-se a ler, escrever, fazer as operações matemáticas, etc. Reflete-se sobre a vida pessoal, familiar e social, cuidados com higiene e saúde. Estimula-se a solidariedade e procuram-se maneiras de fortalecer a organização da cooperativa dos catadores/as. Também sempre é servida uma refeição para os participantes.
Mas, agora tudo está parado. O projeto foi suspenso temporariamente. O lixão, último local e recurso que restou para os catadores/as buscarem sua sobrevivência, foi interditado. E não podia ser diferente. Todos nós fomos obrigados a ficar reclusos pela imposição do coronavírus. Sabemos que se desrespeitarmos essa ordem, poderemos pagar com nossa própria vida. Mas, enquanto tudo isso acontece, a fome e outras necessidades próprias de todos os viventes se mantém e precisam ser supridas.
Então, a solidariedade se torna ainda mais necessária. Felizmente, ela está emergindo em muitos lugares e de muitos modos. Eis que um determinado e desconhecido grupo de pessoas atendeu ao apelo de uma ONG que na cidade desenvolve ações solidárias em diferentes épocas do ano, visando socorrer os mais necessitados. Essa ONG recolheu e nos entregou um determinado número de cestas de alimentos. Nesse domingo, no local onde acontece o projeto com os catadores, observando todas as orientações dos órgãos de saúde, fomos entregar as cestas de alimentos.
Ação rápida, distanciamento recomendado, em espaço aberto… Lá estavam os catadores/as com olhar de alegria que se sobrepunha à tristeza que nos atinge nesse momento. No semblante de todos/as estava estampada a mensagem: ‘Afinal de contas, alguém se importa com a gente’. Tomando a palavra, perguntei se estavam cientes do grave problema trazido pela pandemia do coronavírus e dos cuidados que precisamos ter. Em uníssono, disseram que sim.
Em seguida, somente eu de máscara, disse que precisava redobrar os cuidados porque minha família está muito longe daqui e se ficar doente a situação poderá ser muito complicada. Então, prontamente alguém disse: “Que Deus livre o senhor de todas as doenças e males. Mas, caso fique doente, eu vou lhe cuidar”. Vários dos catadores/as que ali estavam repetiram o mesmo. Diante desse conjunto de solidariedades, não tive mais palavras. Só chorei! (29.03.2020)
Obs: O autor é Doutor em Sociologia, pós-doutor em Educação e professor da Universidade Federal do Sul da Bahia