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Desde o título, o filme é corajoso. Porque exprime a reivindicação que todos temos, ainda quando se mantém latente; até mesmo aqueles que, perseguidos por tagarelices incessantes, possam afirmar o contrário. Palrear é diferente de falar e falar, diferente de falar com –  essa a questão.

Vivemos num mundo entupido de palavras ocas – vazias de sentido, soltas, aglutinadas, sem conexão com afetos – escritas, faladas, ouvidas, cantadas, caladas, recalcadas, e/ou não percebidas…

Doze anos atrás, Felipe Sholl iniciou o trabalho do roteiro de Fala Comigo. Melhor dizendo, concebeu o germe da história, gestada longamente, no decurso de seu amadurecimento como cineasta, ele que, ainda hoje menino (no melhor sentido do atributo), já nasceu velho, como dizia meu pai, quando se referia a bebês que vêm a esse mundo, plenos de um saber experiente.

Felipe sempre foi bom ouvinte. Ouso valer-me de observação de longa data, porque a sua e a minha seriedade nos permitem lembranças, desde quando eu o via, criança ainda, na piscina do Clube Germânia, depois ator iniciante no teatro do  Colégio Bennett, até como sócio do Disse-me-disse Café-e-Cultura, nos tempos do Centro Cultural Viva, em Botafogo, criadouro de uma bela geração de jovens talentosos. Felipe Sholl, em todas as ocasiões, olhos e ouvidos atentos, tanto sorvia como temperava, suave e precisamente, a convivência a seu redor.

E foi logo depois, que ele iniciou o roteiro do filme Fala Comigo, construindo-o em muitas faces e arestas consequentes, como toda boa conversa precisa ter.

Esperei por esse filme, com o carinho de quase madrinha, lugar a que me outorguei, mal soube, por ele, da existência do projeto, quando já ia em fase de finalização.

E eis que, agora, surge a obra, na tela grande, ocupada e preenchida por muitos bons atores e excelente produção, trazendo, enquanto conta a intrigante história, importantes e oportunas denúncias:

– da família burguesa, pôster de felicidade supostamente inquestionável, com imagem que parece quase perfeita ao observador menos exigente, e cujos membros, no entanto, não conseguem ter, entre si, comunicação real. Neste caso, pai e filhos giram em torno de uma mãe centralizadora, ela própria rodopiando sobre o esteriótipo de oráculo impenetrável, em que se encastelou, no papel de psicanalista.

Ah! Como precisamos – mulheres que lutamos por afirmação e emancipação – repensar a entronização que almejamos, construímos, e na qual ficamos cativas.

– da psicanálise exercida por terapeuta que, tomando arrogantemente o lugar de sujeito suposto saber, entrincheira-se na teoria, sem arriscar o conhecimento preconizado por Winicott da mutualidade, reciprocidade e experiência compartilhada, onde se dá o brincar capaz de criar e desenvolver. A pressa e despudor de diagnosticar, fazer previsão, determinar o outro e negar-lhe o direito à escolha de seu próprio destino, usados como defesa, está explícita  na cena em que a terapeuta confronta desrespeitosamente a paciente que ousou abandonar o tratamento e seguir outro caminho de autoconhecimento, na busca de autoestima.

– da polidez distanciada entre as pessoas, que nos garante uma convivência morna, aparentemente correta, mas que não facilita a criação de laços afetivos. Os porteiros, os médicos e os funcionários do hospital, os professores da escola, os colegas (porque amigos, não os há, nesta história) exemplificam perfeitamente uma forma de viver dentro de limites, que poderiam se dizer comuns, talvez, em que cada um guarda, para si, suas dúvidas, suas inseguranças, suas dores, sua vida e até sua morte, sem o risco de produzir muito ruído e de entrar em contato com sua própria humanidade, através da percepção do outro.

– do modelo de relação amorosa adotada como padrão em nossa sociedade  – homem x mulher, de idades próximas, grupos, classes sociais e costumes semelhantes – modelo que só pressupõe e aceita exceções para fortalecer-se como fator excludente de quaisquer outras possibilidades.

 A mãe-analista, no filme, demonstra aparente e quase displicente tolerância ao ouvir o relato do filho sobre seu interlúdio de prazer sexual com um colega, mas abomina a simples ideia de ele poder viver um romance com uma mulher mais velha.

– da função paterna e do papel do masculino, representados por presenças ausentes e ausências presentificadas. O pai, que não está ali de fato, aceita o lugar de subjugado, que o enfraquece frente aos filhos. Já o marido da amante, que a abandonou e por quem ela sofre e chora, volta ilusoriamente à cena, na fantasia vivida pela mulher ao ouvir, no telefone, não palavras, mas uma respiração ofegante, sinal indelével de vida e do desejo, a que ela, ferida amorosamente de morte, aspira, necessita e que a vai libertar, enfim.

Ah, Felipe Sholl, suas colegas de adolescência, presentes à primeira pré-estreia o Rio, tiveram toda razão ao afirmar como é impressionante que você tenha acumulado tanta experiência, ainda tão jovem!

Sobressai tal sabedoria na sua forma irreverente e ao mesmo tempo singela e divertida de tratar os temas do corpo – o gozo, o orgasmo, o esperma, o corpo da mulher, que ao invés de petrificado no atual modelo estéril do consumo, aparece como sinal de abundância. Esse, aliás, um dos grandes momentos da interpretação do ator mais jovem, que consegue, através de magnífica expressão facial, transmitir a ideia de fartura, no deslumbramento com que admira a nudez da amante.

Tudo isso nos é mostrado, sem deslizar, em momento algum, para o campo minado da vulgaridade ou da inconsequência. Ao contrário, transmite e exprime potência de Eros,  libertação, aceitação do que é júbilo e renovação, saúde psíquica, enfim, na aceitação do  humano,  do lúdico, do espontâneo.

E, harmoniosamente entrelaçadas, estão as referências necessárias ao inevitável, que não é prazeroso: desencontro, frustração, separação, abandono, inveja, desamor, solidão, desilusão, medo, desespero.

Talvez, o mais importante seja que, sem lições a oferecer, o filme termine no meio do caminho – como se inicia. Um outro momento, outras possibilidades, a escolha de estradas está por ser feita e os percursos, desafios a mais, a cada momento; em parceria, sempre temporária, ainda quando renovada.

– Fala comigo! – eu murmuro ao se acenderem as luzes do cinema, buscando um interlocutor.

E saio da sessão, muito mais disposta a me falar, a me ouvir, a falar, a ouvir, a ser ouvida, a pensar, repensar e me oferecendo a ser repensada. É pulsão de vida pura, esse trabalho!

Parabéns, Felipe Sholl e sua equipe! Minha gratidão exposta e registrada, deixo aqui.11.07.2017

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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