(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio,
decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio *)
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O momento em que vivemos é marcado profundamente pela experiência de perda. Vamos perdendo pelo caminho a cada dia: saúde, energia, confiança, vida, pessoas, afetos, companhia. Perdemos o jeito de viver que conhecíamos, perdemos os gestos que expressavam nossos sentimentos mais profundos. Perdemos a orientação segura, o norte claro. E perdemos as referências.
Quando se perde as referências, há um sentimento de total vazio e perplexidade em nós. Necessitamos referir-nos a algo para nos situarmos no mundo e na existência. Nossas referências nos dizem quem somos, o que amamos, o que sabemos, o que pretendemos. Essas referências podem ser símbolos textos, músicas, livros. E podem ser pessoas. As referências que hoje me doem são pessoas que perdemos, cuja perda ao mesmo tempo em que nos desola nos ilumina.
Primeiro foi Moraes Moreira. Seu talento e o jeito bom de ser nos encantavam há décadas. Este baiano que se fez carioca tinha uma simpatia, um jogo de palavras, um ritmo, que escancaravam a cara do Brasil onde quer que fossem tocadas suas músicas e canções deliciosas. “Festa do Interior” na voz aguda e bela de Gal Costa nos remetia ao interior do nosso imenso país, às festas de São João, cheias de luzes e balões. “Preta Pretinha” nos transporta para a África mãe e mítica, com seu batuque e gingado únicos e inconfundíveis. E a canção profética de lá vem o Brasil descendo a ladeira nos presenteou com um emblemático diálogo entre o poeta, o sambista e o povo: cadência, morro, asfalto, mulata, sola, salto. Tudo estava lá na música desse novo baiano, amado por todos e cheio de gênio e poesia.
Depois foram, no mesmo dia, Flávio Migliaccio e Aldir Blanc. O primeiro, grande ator, decidiu interromper a vida por cansaço de viver no país que era o seu. Na carta que deixou e foi tornada pública pela mídia, Flávio dizia que a velhice no Brasil era como tudo aqui. Triste e amargurado, despedia-se com a impressão de haver vivido 85 anos jogados fora nesse país que sua arte ajudou a construir. Porém, ao mesmo tempo em que escrevia uma frase que transpirava desesperança – “A humanidade não deu certo…”, pedia como que se desmentindo a si próprio, teimando na esperança: “ Cuidem das crianças de hoje”. Quem morre pensando no futuro que são as crianças mostra que a esperança e a inabalável grandeza de ser humano não o desertou. Flávio Migliaccio é referência. E assim o reforça seu amigo e colega Lima Duarte, em comovente depoimento, onde afirma não ter tido a coragem que teve Migliaccio.
No mesmo dia em que nos deixava o grande ator Migliaccio o Brasil perdia igualmente seu mestre sala dos mares, seu bardo da liberdade e da anistia: Aldir Blanc. Aldir cantou como poucos a amizade, forma e expressão privilegiada do amor. Cantou o desejo de justiça e igualdade com “O Mestre Sala dos mares”, canção que enaltece o líder negro da revolta da chibata, João Cândido Felisberto. Poeta e profeta da liberdade, devemos igualmente a Aldir Blanc a belíssima canção imortalizada na igualmente imortal voz de Elis Regina “Querelas do Brasil”. Definitivamente Aldir sabia que o Brazil não conhece o Brasil, o Brazil nunca foi ao Brasil. Talvez nunca como hoje seus versos se mostram tristemente verdadeiros.
Porém, é a bela “O bêbado e a equilibrista” que ressoará em nossos ouvidos cada vez que desejarmos respirar liberdade nesses ares contaminados do Brasil de hoje. Considerada o hino da anistia, celebrando os últimos estertores da ditadura militar que nos oprimiu por décadas e ceifou tantas vidas, a canção falava de mortes e exílios, de luto e arte, de sonhos e de esperança equilibrista, reafirmando o papel do artista como cantor comprometido com a liberdade e a justiça.
Referências que se foram, cuja partida nos empobrece assustadoramente e cria vácuo à nossa volta. Fica, porém, seu legado: a música de Moraes Moreira, a escrita refinada de Aldir Blanc, a arte teatral incomparável de Flávio Migliaccio continuarão sendo referências para nós se não nos deixarmos tomar pela desesperança.
Incompleta, minha lista de referências perdidas pelo caminho pode ser transformada em nuvem de testemunhas. Assim diziam os primeiros cristãos com respeito a seus mártires, executados em meio a horríveis torturas. Eram como uma nuvem de testemunhas que os ajudavam a não desanimar e a continuar lutando pelo Reino de Deus, de justiça, fraternidade e amor.
Que essas referências e outras tantas que perdemos pelo caminho nos ajudem a continuar acreditando no que escreveu Moraes Moreira em sua última postagem, pouco antes de ser traído por seu grande coração, detido fatalmente por um infarto, já em tempos de coronavírus: O que vale é o ser humano/E sua dignidade/ Vivemos num mundo insano/ Queremos mais liberdade/Pra que tudo isso mude/Certeza, ninguém se ilude/Não tem tempo, nem idade.
Obs: A teóloga Maria Clara Bingemer é autora de “Santidade, chamado à humanidade” (Editora Paulinas), entre outros livros.
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