(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio,
decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio *)
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A sensação é que subimos uma montanha em meio à escuridão.  Não se vê claro nem embaçado.   Na realidade, não se vê nada. Só se sabe que há que seguir caminhando.  E como nada se vê, nada se entende: a direção, a meta, o sentido, tudo se obscurece. Fechados em casa, olhando o mundo pela janela ou pela tela do computador ou do celular, estamos oprimidos até o extremo pela situação que vivemos, totalmente desconhecida e hostil.

A vida “normal” continua nos supermercados e farmácias. E seus limites são testados sobretudo nos hospitais, onde pacientes sempre mais numerosos são atendidos por dedicados e exaustos médicos, enfermeiros, agentes de saúde. Ali os caminhos se bifurcam entre a ausência de saída e a volta dos que um dia entraram e agora reencontram sua cidadania no mundo dos vivos.

É neste ponto do caminho que acontece a celebração da Semana Santa.  Para muitos é um feriado a mais; para os cristãos trata-se do núcleo vivo de sua fé.  Tradicionalmente, esses dias sempre foram uma pausa no caminho corrido de cada dia para celebrar, orar, rezar. E sobretudo festejar a boa notícia de que o Crucificado venceu a morte e agora vive para sempre.

Mas desta vez não é possível deter-se.  A subida da montanha em meio à escuridão deve continuar. Aos corpos combalidos e aos corações aflitos não é permitido parar, esperar, descansar.  Há que seguir em meio à desolação e à ignorância quase total do que acontece, vivendo cada dia à espera do que virá daqui a 24 horas ou até mesmo nos minutos seguintes.

Caminhemos, pois, em meio à desolação em que nos encontramos.  Pode consolar-nos, no entanto, saber que a nosso lado caminham Cleofas e seu companheiro (ou companheira). Vêm de Jerusalém e vão para uma cidade vizinha chamada Emaús. Em meio à tristeza com a perda do Mestre, vão pisando desolados, perplexos, sem nada verem diante de si a não ser o vazio.

Em certo ponto do caminho, percebem que com eles caminha um forasteiro, alguém que não é do lugar e provavelmente não se destina a Emaús, mas anda pelo único motivo de acompanhá-los. Chegamos perto e escutamos o estrangeiro perguntar: “Mas por que tanta tristeza? ” E sentimos que essa pergunta é dirigida a Cleofas, ao outro e a nós mesmos.

Entre indignados e perplexos, desabafamos: “Você é o único que não sabe o que está acontecendo? Não sabe que mataram Jesus de Nazaré, que era a esperança do nosso povo e  ia libertar Israel?  Não sabe que o mundo inteiro geme sob o flagelo de uma pandemia, lutando contra um vírus hiper contagioso que vitima gente de todas as idades? Não sabemos a quem pedir ajuda.  Parece que Deus se esqueceu de nós.”

Caminhando sempre, o forasteiro ouve as perguntas, as dos discípulos de Emaús e as nossas.  E repreende nossa falta de fé, nossa lentidão em crer no sentido maior de tudo que está acontecendo. Abre as Escrituras e as desvela. E elas brilham com o fulgor da Palavra de Deus e fazem arder novamente nosso coração congelado pelo medo.

Não sabíamos que o Messias passaria pelo sofrimento e pela Cruz antes de entrar em Sua glória? Essa foi a promessa feita por Deus a Moisés, essa a profecia dos profetas, essa a esperança do povo que Deus não defraudará jamais. A vida vencerá a morte.

O dia cai e faz frio.  A luz se esconde e há medo. Pedimos ao forasteiro que fique, que não nos deixe. Sentados à mesa, cansados e famintos, estamos com Cleofas e todos aqueles e aquelas que hoje experimentam que é difícil acreditar e continuar a caminhar sem ver o caminho e sentindo apenas a espessura da noite. Pedimos a esse que intuímos quem seja, mas cujo rosto vemos apenas difusamente, que fique conosco.

O pão se parte e as trevas se dissipam.  A Páscoa iluminou nosso caminho. Reconhecemos enfim Aquele que caminha conosco e mostra seu rosto nas vítimas da pandemia, nos que cuidam dos doentes, nos que enterram os mortos, nos que se isolam dos seres queridos por amor e sofrem a punhalada da ausência. Seu rosto aparece marcado pela dor e pela aflição nos pobres que vivem na rua e não têm possibilidade de isolar-se.

Jesus ressuscitou dentre os mortos.  A alegria desta Boa Notícia não impede que a dor não doa e as lágrimas não corram.  Mas abre uma réstea de luz em meio a essa caminhada noturna e difícil, rememorando que Deus jamais abandonou seu povo.  Nem deixou de resgatar seu Filho das garras da morte.  O amor é mais forte que a morte.  E em nome desse Amor cremos e proclamamos que essa pandemia terá um fim, oferecendo-nos como humanidade a oportunidade de dela emergirmos mais humanos e mais vivos.

Feliz Páscoa!

 Obs: A autora é  autora de “Mística e Testemunho em Koinonia” (Editora Paulus), entre outros livros.

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