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Primeiro dia.
Meus 3 eus se encontraram.
O social e idealista trabalhador brasileiro,
O pai de família um pouco ausente, mas sempre prestativo,
E o sonhador, o que desfia gumes de faca pra forjar amanhãs.
Não sei o que vai dar.
Segundo dia.
Meu eu social trabalhador começou a encafifar com a paradeira.
Meu eu pai de família se alegra com a reunião imposta.
E meu eu sonhador busca na rotina e no tédio um nesgazinha de felicidade.
Foi o que deu.
Terceiro dia.
Meu eu social trabalhador sente saudades do relógio de ponto.
Meu eu pai de família luta pra que não lhe visite seu animal interior.
E meu eu sonhador tenta uma oração que não seja herdada.
Os três seguem chocando o mesmo ovo gorado.
Quarto dia.
Esse dia começou estranho.
Meu eu social trabalhador procura algo pra fazer no sem o que fazer.
Meu eu pai de família segue lambendo as crias. De longe.
E meu eu sonhador começou a desconfiar que há mais alguém além dos três.
Isso vai dar merda.
Quinto dia.
Esse dia começou com uma semana que não começou.
Meu eu social trabalhador sabe o que isso significa.
Meu eu pai de família iniciou a noia de fazer e desfazer coisas.
E meu eu sonhador segue encafifado, desconfiando que há mais alguém além dos três.
Todos, estão indo pros quintos.
Sexto dia.
Essa terça-feira começou cinzenta, senão, branca, feito um domingo.
Meu eu social trabalhador não sabe o que isso significa.
Meu eu pai de família segue desfazendo coisas.
E meu eu sonhador continua estromberado, mas não quer alarmar os outros dois.
Seguem, todos, emberembezados.
(obs: estromberado – assustado, espantado; emberembezado – enrolados, emaranhados, confusos.)
(obs2: essas duas palavras não existem nos dicionários, são criações do autor)
Sétimo dia.
Se os bares morrem numa quarta-feira, como disse o minerim PMC, por aqui, já esperamos a visita de sétimo dia. A ele, o bar.
Meu eu social trabalhador lembra que não tem Mengão e nem Eisenbahn geladinha hoje.
Meu eu pai de família segue indo e vindo dentro de casa, feito barata tonta.
E meu eu sonhador desencafifou um pouco, mas continua desconfiado de haver outros aqui, além deles.
Os três, é claro, só temem a abertura do sétimo selo.
Oitavo dia.
Do descanso descansado meus eus se cansaram.
Meu eu social trabalhador vive sonhando acordado com a volta da rotina.
Meu eu pai de família surtou e lavou, com escovinha e tudo, uma velha e encardida caixa plástica hortifruti. Quem conhece, não sabe quantos vãos a bichinha tem.
E meu eu sonhador anda mais teiquirize, se esbaldando com as leituras e as viagens literárias na sua cabeça.
Para os três, as notícias que chegam sobre o mal são muito contraditórias para se levar em conta. Basta a quarentena. Garantem.
Nono dia.
Uma sexta-feira em que nada sextou.
Meu eu social trabalhador recebeu hoje seu primeiro home office – coisa chique pra dizer trabalho em casa. Se esbaldou.
Meu eu pai de família pegou mais leve hoje. Passou o dia inteiro feito lagartixa. De papo pro ar.
E meu eu sonhador descobriu que dentro de um besouro e seu minúsculo exoesqueleto pode ter Deus.
Os três estão se virando como podem. E com o que não podem também
Décimo dia.
Sabadou sem sabadar. Sabe-se lá o que seja isto.
Meu eu social trabalhador mais tranquilo. Afinal, é sábado. Sábado?
Meu eu pai de família, carango e família (parte dela, afinal tem regra na quarentena) rumaram pro atacadista pra compra do mês. A novidade foi a fila na entrada ao invés da do caixa. Não nos livramos da fila. Somos todos filhos dela.
E meu eu sonhador anda a procura do verso perfeito.Segue ele com seu velho defeito.
Os três tão fechado numa coisa: tem muita informação contra pouco conhecimento nas teias enrugadas da web. A aranha mundial deve andar grilada com isso. Ou superfeliz.
Décimo-primeiro dia.
Domingo, enfim, é um dia branco, como cantou um poeta.
Meu eu social trabalhador tá de boas. Regurgitando ontens.
Meu eu pai de família, domingou. Varanda, livros, almoço em família, flashbacks. Foi o saldo. Até futurologia pintou. Como esses dias estão longos.
E meu eu sonhador viu Dylan dizer, depois de 20 anos morto, que o Ocidente morreu em 1963.
O calvário continua para os três. E não adianta adiar nada. Procrastinar é verbo morto por aqui.
Décimo-segundo dia.
Segunda-feira cinzenta, como cantou o poeta nordestino.
Meu eu social trabalhador se segura nos 30 da mesmice.
Meu eu pai de família reativou o descanso do guerreiro, ajeitando o tecido para uma preguiçosa.
E meu eu sonhador sonhou que a teoria do caos, na prática, pode ser uma pandemia .
Os três tão com o vate nortista. Sentem o “bafejo da hidra de sal”, enquanto os “dragões” dos seus sonos, seguem rasgando anúncios na televisão.
Décimo-terceiro dia.
Terça-feira, última de março, esse mês comprido feito quarentena.
Meu eu social trabalhador lembrou que só não quer ser explorado, nem digno de pena.
Meu eu pai de família está no modus sossegadus. Saber do que não sabe às vezes pode fazer bem. Pensa ele.
E meu eu sonhador tenta apalavrear o que pode vir-a-ser o ser humano no novo mundo que virá. Virá?
Os três, velhos – como eu – estão sentados há muito diante dos cadáveres de suas juventudes.
Obs: O autor é Jornalista e Gestor Cultural.