Taciana Valença 15 de abril de 2020

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Acordei escutando forró. Mais especificamente Flávio José:

“Eu me criei
Matando a fome com tareco e mariola
Fazendo versos dedilhados na viola
Por entre os becos do meu velho Vassoural…”

e mais…

“E de uma coisa fique certa, amor
A porta vai tá sempre aberta, amor
O meu olhar vai dar uma festa, amor
Na hora que você chegar…”

Bom ouvir esse forró tão nosso. Pensei: nem tudo está perdido! Fui tomar meu banho. Foi quando vi de onde vinha a música. A janela do banheiro dá para o estacionamento de um supermercado (bom que facilita para que eu veja quando está cheio ou não), e como não estava com pressa para nada, fiquei ali, escutando a música que vinha de lá (sempre tem algum artista tocando neste supermercado ou algum som).

Aproveitei e fiquei observando. A música tocando, pessoas mascaradas descendo e subindo dos respectivos carros. Pareciam robôs. Se a humanidade já estava tão individualista, imagina agora. Ninguém praticamente se olha, pois cada um virou um potencial transmissor de um vírus letal.

Nossa! Nunca pensei que viveria para ver isso. Nunca pensei que seria preciso essa brecada do Universo para que parássemos para refletirmos sobre a vida medíocre que temos, no erro de foco que demos para a vida. Mas o dia a dia continua mostrando que o salve-se quem puder está agora latente, mostrando a cara e os dentes numa ferocidade de doer.

Fiquei ali pensando na janela do banheiro. Por essas alturas já tinha desligado o chuveiro e senti uma grande vontade de chorar. Do lado de fora os pedintes, depois das grades, pedindo seja lá o que fosse. As pessoas seguiam como se nada estivesse escutando. E como somos dependentes! Dependentes de tudo. Mal acostumados, desesperados. O local sempre tem gente e, apesar do momento, está sempre cheio. Porque não pode faltar nada, seja o que for, bate um desespero, tem que sair, tem que comprar, tem que se abastecer, tem que, tem que, tem que…
E olha que a fome passa longe…, por enquanto.

Lembrei que hoje é Domingo de Ramos, celebrando a entrada de Jesus em Jerusalém, montado em seu jumentinho, simbolizando a humildade que não temos.

Somos tão pequenos, mas tão pequenos que agora, acoados pelo inimigo invisível e mortal, continuamos ainda sem olhar para nós mesmos, a ocupar os dias de formas tantas que ainda não nos viramos para o espelho para analisarmos quem somos, a que viemos, onde erramos e de agora em diante o que pretendemos fazer, se tivermos a bênção e a chance de permanecermos vivos para mudarmos o rumo de nós mesmos e do mundo.

E vai demorar, os dias próximos serão difíceis, muito difíceis.
E por isso eu me rendi. Entrava na cozinha, lá estava eu limpando, entrava no quarto, lá estava eu arrumando papéis, entrava no banheiro, lá estava eu arrumando toalhas, escovando os dentes. Eu fazia que não via, passava direto, não encarava. Sabe por que? Porque encarar a nós mesmos dói. Responder perguntas fáceis é a coisa mais difícil que há. Então ontem eu respondi uma das perguntas mais difíceis de responder. O que estava fazendo da minha vida até ter a oportunidade de pensar sobre isso? Até chegar o medo de uma perda concreta dela e dos meus familiares, amigos, conhecidos e mesmo de tantos desconhecidos, mas irmãos de mundo?

Então, por maior que seja essa tragédia, ela vai nos ensinar, ela veio para isso: colocar a todos no devido lugar. Os que entenderem terão a oportunidade para evoluírem, os outros, infelizmente, precisarão de mais oportunidades, quem sabe mais sofridas. Estamos todos tendo a mesma oportunidade. Esse é o boot que a vida nos deu.

Que possamos, nesse domingo, refletir sobre esse passo, esse momento, essa demonstração de que não somos nada diante da força do Universo ou de um Deus.

Que em sua chegada ele possa nos encontrar de joelhos, em sinal de humildade e querência de um verdadeiro perdão. Mas que acima de tudo, mudemos o rumo do mundo, tornando-o mais humano e menos egoísta.

Um abraço em todos. Protejam-se do vírus, mas principalmente do vírus letal que habita em cada um de nós.

Peçamos pela humanidade que sofre, sinceramente, e com toda a força que temos dentro de nós.

Ótima semana para todos.

Obs: Imagem enviada pela autora 

A autora é poeta, administradora e editora da Revista Perto de Casa.
http://pertodecasa.rec.br/

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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