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Estamos vivendo tempos que, até pouco mais de um mês atrás, contestaríamos qualquer um que dissesse que iriam acontecer. Afinal não estamos mais vivendo na Idade Média, no século XIV, onde a peste negra dizimou uma boa parte da vida humana da Europa. Muito menos no início do século XIX, quando aconteceu mais outra pandemia, a Gripe Espanhola.

Estamos no final da segunda década do século XXI. Ou, como alguns preferem, no início da terceira década do século. De uma perspectiva ou de outra, duas décadas já se passaram desde o início do Terceiro Milênio, tenha ele se iniciado no ano 2000 ou 2001, não importa.

O que importa mesmo é que a tecnologia atingiu patamares de ficções científicas, nos comunicamos em tempo real com pessoas do outro lado do mundo, sem precisar de gastar uma fábula de conta telefônica, fazemos encontros familiares, de amigos, de trabalho, virtualmente, usando aplicativos de vídeo conferência, alguns dos quais ou já possuíam versão gratuita ou estão disponibilizando durante a quarentena. As compras de supermercado e feira de frutas e verduras são feitas através de sites ou até pelo whatsapp, com a entrega em casa ou, opcionalmente, retirada nas lojas.

Os aniversários, almoços em família, são partilhados virtualmente, o home office se tornou a opção de milhares de trabalhadores e trabalhadoras no país e no mundo, aulas são ministradas on line, ou seja, todo um processo de reinvenção está acontecendo, mudando a rotina e os hábitos da população em cada canto do planeta.

Com escolas, creches e universidades fechadas, os pais e mães que estão trabalhando em casa, estão tendo uma oportunidade única de conviver mais de perto com seus filhos, de inventar brincadeiras e voltar, com eles, a ser criança, de jogar vídeo game ou assistir a desenhos que nem sabia que existiam. Têm ainda os livros de história para ler com a criançada, as músicas ou danças para aprender ou reaprender, tem muita opção de farra e diversão.

Para quem não está saindo para trabalhar e não tem como trabalhar em casa, seja por estar na faixa etária de risco, seja por seu trabalho ter que ser presencial e que não tem filhos em casa para entreter, as opções para preencher o tempo são inúmeras. Têm lives a toda hora, com entrevistas, apresentações de artistas, concertos, milhares de livros digitais com acesso grátis, canais de TV por assinatura abertos, tem o show mais recente de Chico Buarque, Caravanas, liberado gratuitamente, além do youtube e suas opções quase infinitas.

Tudo isso poderia ser maravilhoso, essa mudança de hábito, essa convivência familiar mais frequente, todas essas opções de lazer, diversão e aprendizado, se não fosse o motivo para que tudo isso esteja ocorrendo. Um motivo que nenhum de nós queria: a ameaça de um algo tão pequeno, que nem consegue ser visto nos microscópios tradicionais.

Diante disso, o que somos, nós, seres humanos, criadores de armas poderosas, que dizimam vidas em segundos, capazes de criar armas químicas e biológicas em seus laboratórios hiper avançados, que criou uma rede mundial que conecta toda a humanidade, onde haja um ponto de eletricidade e internet? Somos poderosos para destruir os nossos semelhantes, mas nos curvamos, envergonhados e desesperados, diante de um vírus, que ninguém vê, que nem sente quando entra em seu organismo, mas que, lá dentro, tem a capacidade de destruir a vida, seja de um idoso, de uma adulto, de um jovem ou até mesmo de recém nascidos. Não escolhe cor, raça, status, quantos números se tem na conta bancária. Não se importa se há vagas nos hospitais, se crianças ficarão órfãs, se netos e netas jamais verão seus avós, o que viúvas e viúvos farão da vida daqui para frente.

O vírus não quer nem saber que familiares não poderão sepultar seus entes queridos, nem do desespero dos profissionais de saúde, sentindo-se impotentes e tendo que escolher quem vive e quem morre, doando a própria vida para que outras vidas sejam salvas.

Alguém escreveu, nem lembro quem, nem onde, que essa pandemia estava, ao menos, unindo o mundo todo, na luta contra ele, não importando cor, raça, religião ou ideologia partidária.

Infelizmente pessoa que escreveu isso, lamento lhe informar, mas não é bem assim que a coisa funciona. Ou não funciona.

No Brasil, pelo menos, não existe uma união na luta contra o vírus. Existe sim, uma luta, mas não tem apenas dois lados. Incrivelmente, são três lados. O lado vírus que está consumindo milhares de vidas no mundo todo, o lado dos brasileiros que lutam contra o vírus e, de boca aberta e olhos arregalados, constatamos que existe o terceiro lado, que torce a favor do vírus.

Enquanto os cientistas e estudiosos pesquisam uma vacina e uma cura, os da área de saúde estão na linha de  frente do combate, seja correndo riscos e até mesmo morrendo ao cuidar dos enfermos, outros se mobilizam para cuidar das pessoas desprotegidas, os que vivem em situação de rua, sindicatos, grupos religiosos, movimentos populares e sociais arrecadam cestas básicas para distribuir com aqueles e aquelas que não podem ganhar seu sustento no momento, restaurantes, supermercados e vendedores de frutas e verduras se reinventam e promovem o abastecimento com compras on line, as pessoas na faixa de risco mais grave, permanecem fazendo quarentena, assim como os que podem trabalhar em casa, vizinhos mais jovens se oferecem para fazer as compras para os mais idosos, enquanto a maioria da população do Brasil, se esforça como pode para que a contaminação seja contida, para que as pessoas não morram na proporção assustadora da Itália dos Estados Unidos, para que a saúde não entre em colapso, tentando prevenir uma catástrofe anunciada mundialmente, os que torcem pelo vírus fazem carreata pedindo o fim da quarentena e que todos voltem ao trabalho. Tratam o poderoso corona como uma gripezinha e, protegidos em suas casas e apartamentos confortáveis, exigem que seus funcionários domésticos trabalhem, talvez até sem ver a família há muitos dias, porque suas mãos delicadas não foram feitas para lavar pratos ou trocar a falda de bebês.

O Brasil, cada vez mais, se consolida como o ringue de uma luta de classes, onde uma minoria rica e poderosa, oprime, com orgulho e alegria e não admite, de forma alguma, que os oprimidos possam ter acesso a uma vida melhor, sequer menos ruim. Em sua defesa, os magnatas brasileiros têm o fato de que o “vírus só mata velhinhos” e que “o que são seis ou sete mil mortes, diante da iminência de uma crise na economia”?

Será que, no final das contas, se deixar o vírus agir, não aconteceria uma seleção natural, que faria a economia crescer? Por exemplo, se morrerem muitos idosos, o INSS vai desafogar e pagar menos aposentadorias e pensões, então vai sobrar dinheiro. Se morrem muitos pobres, o SUS vai ficar menos sobrecarregado e poderá funcionar melhor, com menos investimento. Se morrem muitas pessoas em situação de rua, a miséria diminui, as cidades ficam mais alegres e bonitas. Vejam que resolveria muitos problemas econômicos do país, incluindo os que são fruto das fakes News e mentes que se acham prodigiosa.

Tudo isso pode ser bárbaro e selvagem, mas ir às ruas, querendo acabar com a quarentena, é um ato de barbárie, uma volta aos tempos onde os mais fortes sobrevivem e os mais fracos são deixados para morrer.

Que bom que a maioria do povo brasileiro não apoia esses absurdos e está colocando a vida acima do mercado. Isso nos dá um esperança, ainda que germinando, de que, depois do Corona, o Brasil poderá, de uma vez por todas, acordar e ver que precisa, urgentemente, voltar a ser um país de todos e de todas. Cabe a cada um, a cada uma de nós, quando chegarmos ao final do túnel e a luz, finalmente começar a aparecer, não varre os cacos para debaixo do tapete. Vamos juntar os cacos, reconstruir a nossa história e recuperarmos o nosso País, de maneira generosa, solidária e quem sabe, até feliz.

Obs: A autora é jornalista, blogueira e Assessora de Comunicação do IDHeC – Instituto Dom Helder Camara.
Site – jornalistasweb.com.br
blogs – misturadeletras.blogspot.com.br 

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 institutodomhelder.blogspot.com

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