Ainda bem
Que agora encontrei você
Eu realmente não sei
O que eu fiz pra merecer
Você
(Ainda bem, Marisa Monte)
Encerrado em casa, não sabia o que fazer diante do medo. O noticiário avisava que o vírus ainda ia se propagar bastante e em progressão geométrica. Talvez, por essa razão, a ansiedade que brotava do noticiário escorreu da tela por água abaixo como se fosse numa enxurrada e espalhava-se no chão da sala.
Era um liquido verde gosmento. Não sabia como estancar aquela praga que, de repente, entrara em seu lar. Depressa, já alcançava outros cômodos. Ia entrando pelos quartos, banheiro, cozinha. Estranhamente concentrava-se na sua casa… Não escapava pelas frestas, parecia mais uma escolha particular em estabelecer-se ali. Que estranho!
Agora, subia vertiginosamente, como no tempo daquelas enchentes presenciadas por ele na infância, e invadia as casas numa rapidez tão grande, levando tudo quanto existia, tudo que era bem querido: gente, pertences, bichos. Todos carregados da mesma forma que as árvores, para serem encontrados como um entulho, espólio de uma devastação muito tempo depois.
A dificuldade maior daquele vírus invasor era o fato de ser uma gosma, como as gelecas que as crianças usam para brincar, e aderia ao corpo, dificultando os movimentos. Como aumentava seu volume da mesma forma que numa enchente, já estava na altura do pescoço. Ao perceber o fim bem próximo, surgiu um último pensamento: Queria ter feito tanta coisa ainda… agora, nunca, nunca mais! Que fim mais triste acabar uma existência por conta de um vírus! Assim tão de repente…
Neste triste pensamento, acorda. Ainda bem que foi apenas um sonho! Entretanto, sabe o que significa o medo. Observa ele, o gosmento, procurando brechas para se instalar em seu espírito. Por esta razão, levanta-se prontamente para fazer alguma coisa. Qualquer iniciativa que dê sentido à vida naquele momento. Não quer mais saber o que não pode ser, o que não serve mais… Ainda há tempo para fazer coisas que lhe façam feliz ou apenas ser simplesmente. Caminha descalço, com tranquilidade em direção à sala. Lá, pode sentir sua alma. Está em casa! Olha ao redor, constata que a TV está desligada e tudo é paz. “Ainda Bem!”
Recife, 31 de março de 2020.
Bernadete Bruto (Recife/PE, 1958) é poeta performática, membra da União Brasileira de Escritores (UBE), da Associação dos Amigos do Museu da Cidade do Recife (AMUC), parceira da Cultura Nordestina Letras e Artes. É integrante dos grupos “Confraria das Artes” e “Grupo de Estudos em Escrita Criativa”. Seus três primeiros livros publicados são coletâneas de poemas, Pura Impressão (2008), Um Coração que Canta (2011), Querido Diário Peregrino (2014). Seu quarto livro trata do gênero infanto-juvenil e é bilíngue: A menina e a árvore – The girl and the tree (2017). Seu quinto livro- Sessenta e um Poemas Para Uma Vida – foi lançado em 2019. Tem participação em várias apresentações poéticas e performáticas. Contatos: www.bernadetebruto.com e [email protected]