Djanira Silva 1 de março de 2020

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Tempo de férias. No trem, a rapaziada indócil cantava uma cantiga chata para chamar a atenção das jovens que se faziam de inocente: um elefante amola muita gente, cantiga chata repetitiva, mesmo assim, todos riam porque éramos jovens e era tempo de sorrir

Nada me impede de viajar. Vou sozinha e vou de trem. Ouço o apito na primeira curva. A fumaça abre os caminhos. O cheiro quente e acre envolve as lembranças e escreve, bem lá dentro da alma, uma história que jamais será esquecida A máquina resfolegante resmunga. Parece contar segredos.
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Nem sinal de chuva. Que bom.
O sacolejo preguiçoso e lento embala as horas. O barulho manco das rodas sobre os trilhos recita um mantra. Caminhos, sem pedras e sem poeira, estirados à nossa frente. Nas estações a garotada vende roletes de cana caiana, cocada branca e de açúcar queimado, laranja cravo, jambo, um boneco Zé teimoso que a gente leva para o irmão mais novo. As cocadas eram devoradas ali mesmo. De jarras de barro, cobertas por alvíssimos panos de crochê, bebíamos a água sem medo de doenças ou de sujeira.
As estradas se alongavam e sonhávamos com a chegada. O nosso mundo começava na curva da favela e terminava no chão da praça. Cidade pequena. Todos se conheciam. Quando chegava um estranho as pessoas corriam para as janelas. Se fosse um rapaz, as moças se alvoroçavam. Se fosse uma jovem os rapazes faziam pose de galã. Hoje, tudo mudou. Já não se percebe quem chega ou quem sai.

Acho que me enganei de caminho. Já não escuto o apito do trem nestas estradas cheias de pneus e buzinas. Rangem nas rodovias asfaltadas as rodas protegidas que não fazem qualquer barulho, motores sofisticados que só soltam fumaça quando pegam fogo.

Quero mesmo ir de trem. Adormeço ouvindo o ruído monótono das rodas sobre os trilhos e volto para casa nas baforadas do vento.

Obs: A autora é poetisa, escritora contista, cronista, ensaísta brasileira.

Faz parte da Academia de Artes e Letras de Pernambuco, Academia de Letras e Artes do Nordeste, Academia Recifense de Letras, Academia de Artes, Letras e Ciências de Olinda, Academia Pesqueirense de Letras e Artes , União Brasileira de Escritores – UBE – Seção Pernambuco
Autora dos livros: Em ponto morto (1980); A magia da serra (1996); Maldição do serviço doméstico e outras maldições (1998); A grande saga audaliana (1998); Olho do girassol (1999); Reescrevendo contos de fadas (2001); Memórias do vento (2003); Pecados de areia (2005); Deixe de ser besta (2006); A morte cega (2009). Saudade presa (2014)
Recebeu vários prêmios, entre os quais:

Prêmio Gervasio Fioravanti, da Academia Pernambucana de Letras, 1979
Prêmio Leda Carvalho, da Academia Pernambucana de Letras, 1981
Menção honrosa da Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1990
Prêmio Antônio de Brito Alves da Academia Pernambucana de Letras, 1998 e 1999 
Prêmio Vânia Souto de Carvalho da Academia Pernambucana de Letras, 2000
Prêmio Vânia Souto de Carvalho da Academia Pernambucana de Letras, 2010
Prêmio Edmir Domingues da Academia Pernambucana de Letras, 2014

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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