Durante as férias escolares, um dia a cada semana, fixado aleatoriamente por minha mãe, eu era “estimulado” a visitar as pessoas mais íntimas e mais idosas da família, por dever, afeição e solidariedade. Comecei antes de a data marcada e fui à casa de minha bisavó, que completava noventa anos. Descendente dos primeiros ferreiros de Itabaiana, por parte de pai, teve seu berço na Matapuã, lugar de meus ancestrais. Era a mais famosa rendeira da cidade. Seu cérebro, um verdadeiro cartório de registro atualizado, indispensável para colhermos conhecimentos sobre o início da República, Lampião, pracinhas da guerra, Getúlio Vargas, chefes políticos e costumes antigos do povo da cidade.

Entrei na sala, caminhei em sua direção e fiz as devidas mesuras: inclinei o tórax para frente, estendi o braço e pedi sua benção. Ela não estava sozinha e após os cumprimentos, levantou-se da cadeira, desprezou a almofada de bilro, foi até a cozinha, espremeu algumas laranjas e trouxe suco para servir a mim e à mulher, que lhe fazia companhia, tão linda que ainda a mantenho viva no local onde as coisas mais significativas da minha vida são mantidas. Ela colocou sua mão suavemente sobre a minha cabeça e perguntou de quem se tratava. Com a carícia do seu toque houve uma avalanche de serotonina e dopamina no meu cérebro. Alguma coisa viva e macia transmitiu-me sensação de frescor e bem estar, logo, substituída por calor. Tomado por sensações agradáveis, equilibradas e harmônicas, eu não pude perguntar a mim mesmo quem eu era, as palavras da minha mente escorregavam pela garganta e não pude responder. Era uma mulher-feita, no auge da idade adulta jovem, aparentando vinte e cinco anos, de beleza angelical e infantil. Pele branca, olhos arredondados e azuis, lábios e nariz finos, cabelos lisos, castanhos claros. Todos os traços de sua face arrumados em perfeita sintonia. Corpo de arquitetura impecável, linhas sinuosas, caminhar elegante, gesticulação bem feminina, porte nobre, simples e refinado. Vestuário sóbrio, coerente com os costumes da época e da comunidade. Quando contemplei tantos encantos, meus sentidos foram gratificados de forma intensa. Muito graciosa, Beliene parecia a imagem de Nossa Senhora de Fátima da igreja de Itabaiana. Era filha de tia Belizana, uma das irmãs de minha avó.

Duas décadas antes, depois de alguns dias de atraso menstrual, Belizana começou enjoar, vomitar e sentir mudanças no cheiro das flores e no gosto dos alimentos. O ciclo menstrual era o único guia usado para evitar uma gravidez indesejada, já que não havia camisinhas, comprimido anticoncepcional, nem a pílula do dia seguinte. Estava grávida e não se conhecia dela nenhum namorado nem amigo íntimo. Entretanto, comentários de pé de orelha, davam conta de que ela ia ao consultório médico muito faceira, inclusive com maquiagem, que mesmo discreta, era considerada coisa do diabo ou de mulher perdida. O doutor Gileno era simpático, galanteador, muito afável, famoso e bem sucedido. Por seus serviços recebia boa remuneração e presentes generosos, tornando-se abastado.

Belizana procurou o médico e insistiu para ser atendida naquele instante. Depois do exame, o doutor confirmou a gravidez e sugeriu sua interrupção, de forma intencional, antes de o feto obter capacidade de sobreviver fora do útero. A trama seria iniciada com uma injeção supostamente para náuseas e vômitos. Pressentiu alguma coisa estranha, recusou qualquer procedimento e livrou-se do abortamento e suas complicações: infecção, hemorragia, perfuração do útero e sintomas psicocomportamentais. Estava convicta de seu propósito de não ceder à tentação de interrupção da gravidez, mesmo sem sentir-se preparada para enfrentar gestação, parto, amamentação, ser mãe solteira e aguentar as reações emocionais causadas pela rejeição social.

Fragilizada, procurou a irmã mais velha em busca de solidariedade e narrou tim-tim por tim-tim a situação, mantendo em sigilo, o nome do garanhão. Maricota, católica fanática, obedecia de forma irrestrita às orientações do livro sagrado e totalmente incapaz de reconhecer a aflição e inexperiência da irmã, argumentou: “o que você fez é imperdoável e merece ser apedrejada. Nosso corpo é o templo do Espírito Santo e você nunca deveria ter afrontado as leis divinas. Será punida e vai viver na ilegalidade, ter outros filhos sem casamento, viver sem Deus, sem amigos, sem esperança e sem família. Mesmo se Deus descer do céu, a pedir-me, não sei se vou remir da minha cabeça, seu crime. Saia da minha casa, não vou proteger quem tem o diabo como companhia”. Minha avó apresentava face agressiva com espuma de cuspe nos cantos da boca, olhos esbugalhados e acesos, fala descarrilhada e aos gritos, corpo inquieto e mãos trêmulas. Não existe um limite palpável entre a ciência e a superstição, entretanto a evolução científica se torna universal e por mais asneira que diga uma pessoa, ela não deve ser ridicularizada, porque devemos respeitar as crenças alheias ainda que absurdas.

A gravidez foi um divisor de águas e as primeiras manifestações agressivas nasceram dentro de casa com as reações da irmã. A vida não podia continuar como antes, a partir do momento em que sentiu que as palavras causam mais dor do que as pedras. Sua determinação de ser mãe sofreu abalos, estava pálida, com as mãos frias, dificuldades para falar, dor no estômago, sonolência, forte angústia e a alma em prantos. Aguardaria, em silêncio, cedo ou tarde, as manifestações expelidas pelos preconceitos e julgamentos da sociedade.

Somos todos responsáveis pela manutenção de crenças e costumes enganosos que podem ser depostos por meio de ações cuidadosamente planejadas. Crucifixos nas repartições públicas, mensagens religiosas em moedas e em cartões de boas festas dificultam. Não devia estar no meio de nós um Deus violento e desprovido de piedade, que assassinou em Sodoma e Gomorra, no dilúvio e no Egito, sem dó, até os primogênitos. A humanidade precisa rever a dicotomia: Deus (bem) e Diabo (mal), e definir a quem interessa um Deus que cala e não demonstra vontade nem força suficiente para destruir o Diabo que anda solto nos subúrbios e nas favelas da África e da América Latina.

Depois de nove meses de cansaço, fadiga, inchaço nas pernas, ansiedade, medo e expectativa, Belizana começou apresentar contrações uterinas, inicialmente esparsas e depois frequentes. A parteira comunicou que já havia dilatação e o trabalho de parto seguia normal. Logo, a gestante descansou, em casa, dando à luz a Beliene, a Nossa Senhora de Fátima dos meus sete anos.

Teve de enfrentar uma jornada difícil e longa para criar uma criança sozinha, ser uma mãe adorável e trabalhar lavando e passando roupa. E, para sair dessa situação desagradável, mudou-se de Itabaiana para Aracaju com a finalidade de recomeçar uma vida nova. Carinhosa, compreensiva e dedicada, precisava também, encontrar alguém para abraçar, amar e sentir-se feliz e deu dois irmãos a Beliene.

Alguns meses após a menopausa, Belizana começou apresentar corrimento fétido, hemorragia vaginal intermitente, dor pélvica cada dia mais intensa, dificuldade para urinar e defecar. Não tinha fome, apenas sede, e vomitava. Foi diagnosticada como portadora de tumor do colo do útero avançado, uma doença que apresenta vínculos com Papiloma Vírus Humano (HPV), comportamento sexual de risco, tabagismo, herpes genital e baixa condição socioeconômica. Submetida a radioterapia e quimioterapia, nada interrompeu a evolução da doença e depois de um ano em seu corpo não existiam músculos nem gordura. Eram apenas couro e osso, barriga grande, pernas inchadas, falta de ar e gemidos.

Mesmo depois de Hipócrates, pai da medicina, há quase 2500 anos ter separado a filosofia da medicina e ter excluído os Deuses e os Demônios como causas de doenças, e, de os avanços da medicina exporem continuamente a importância das bactérias, dos vírus, vacinas, fármacos, stents, marca-passo e transplantes, ainda não abandonamos os conceitos medievais do envolvimento de “forças misteriosas” na etiologia e cura de doenças. Tia Belizana faleceu atribuindo seu sofrimento ao pecado de ter mantido relações sexuais, sem o pálio do casamento. Aracaju, 02 de Janeiro de 2020.

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]