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Antes, eu escrevia  com lápis. Apontados a jeito, em páginas de papel encorpado, de preferência.

Mais tarde, acostumei-me às canetas: às tinteiras, que borravam o lado do dedo, depois às esferográficas, de tintas azul escuro ou preto, pelo meu gosto.

Naqueles tempos, eram cadernos e mais cadernos (raras folhas soltas), sempre preenchidos quando aparecia um desejo incontornável de registrar ideias: poemas, cartas, redações (encomendadas ou espontâneas).

Em finais dos anos 1970, queimei todo o acervo de registros de amores, dores, alegrias, exaltações, desejos, agradecimentos, revoltas, sonhos…  Aconteceu depois de uma amiga, que morava no exterior, me dizer que me via, como os judeus perseguidos durante a Segunda Guerra, tentando salvar, em baús, seus tesouros. Mudando frequentemente de casa, eu preservava, em malas antigas, o que eu considerava a riqueza maior da minha vida – meus escritos.

Mas quando li, na biografia de Freud, que ele (se não me falha a memória), aos 26 anos, queimara tudo o que escrevera até então, totalmente identificada com seu gesto, tendo a mesma idade, resolvi imitar seu gesto. Os papéis arderam durante toda uma noite. Com uma vizinha a meu lado, eu ia lendo cada texto e lançando-o às chamas. Uma cerimônia solene, um ritual de passagem.

No dia imediatamente posterior, em minha sessão de análise, após ouvir meu relato,meu analista disse-me que aquele fora um gesto de esperança. Eu, certamente, acreditava que poderia continuar criando – ele declarou. Gostei de ouvir aquela interpretação. Era um bom vaticínio e eu o adotei.

Nesse tempo, eu já escrevia à máquina, mas só profissionalmente, reproduzindo textos alheios ou passando a limpo os meus próprios. Cartas, até hoje, escrevo à mão e sigo sendo uma missivista de plantão.

Com o passar dos anos, as máquinas de escrever  foram se aperfeiçoando, oferecendo corretores, teclados variados e eu, ao começar a criar livros didáticos, para minha Escola Viva, fazia-os ou manualmente (com caligrafia desenhada página por página, depois reproduzidas em mimeógrafos e, mais adiante, em cópias xerográficas), ou usava uma máquina de escrever que adquiri especialmente para aquela finalidade, com teclado especial, de fontes grandes e bem legíveis.

Quando meu filho foi estudar fora do Brasil, logo de início, nos escrevíamos regularmente  – cartas e cartões, feitos à mão. Depois, o computador chegou a nossas vidas e passamos a escrever e-mails, que, depois de lidos, eu imprimia e ia guardando… Colecionada esta correspondência, anos depois, presenteei-o com um álbum que conjuga suas duas partes e que lhe permite ver como fomos desenvolvendo nossa relação, com respeito pela independência mútua e com tantos sentimentos construtores!

Um dia, uma sobrinha, formada em Informática, me estimulou a experimentar fazer os livros didáticos no computador. Quase morri de excitação quando descobri que podia voltar atrás, quantas vezes fosse preciso, corrigindo o texto em tempo presente, reformulando, cortando e colando – tudo aquilo que eu fazia, literalmente, com tesoura e cola, nos rascunhos, rabiscos e re-escritas infindas. Todos os originais dos livros foram refeitos no computador e salvos, possibilitando re-edições, correções, compartilhamentos, um sem fim de possibilidades, impensáveis muito pouco tempo antes.

Quando escrevi meu primeiro livro – “Enquanto papai não volta…” – o original foi produzido à mão, quase sussurrado, como poesia… E ainda, quando escrevi “Vasos Sagrados”, processo que me tomou 6 anos de pesquisas, mesmo já sendo usuária da tecnologia, residia parte do tempo na zona rural, com dificuldade de acesso à Internet e, muitas vezes, com interrupção do fornecimento de energia, o que me levou a escrever a maior parte do texto manualmente, remendando, cortando e colando, à moda antiga.

Depois seguiram-se outros livros e, com a necessidade de divulgá-los, ao mesmo tempo em que exercia meus trabalhos de psicanalista e de coordenadora de grupos de leitura e reflexão, sem poder me ausentar de minha cidade, frequentemente, passei a usar a Internet, as redes sociais e todo o aparato tecnológico, cujos segredos ia conseguindo desvendar e usar, a meu favor. Tornei-me uma internauta, claudicante, mas persistente.

Surgiu nesse tempo meu primeiro blog. Lembro-me que aquela mesma sobrinha, que me apresentara à informática, me informou que Saramago havia iniciado um blog, à mesma época. Que incentivo! Escrever num blog foi um bom exercício, que ainda hoje me traz frutos, por leitores que me cumprimentam, por publicações presentes que reproduzem aqueles textos iniciais. Todo esse movimento de me atualizar foi um recurso necessário, para não perder hábitos de comunicação que me estruturaram, como leitora e que me edificaram, como escritora.

Sim, sou do tempo em que se abria os jornais, na manhã de domingo, com a cerimônia e prazer de quem ia encontrar os grandes cronistas, e se deliciar com sua prosa. Sou do tempo em que íamos à Biblioteca Municipal regularmente, buscar gratuitamente livros da melhor qualidade, que  propiciavam o enriquecimento de nossas férias, com leituras deliciosas! Sou do tempo em que ir aos Correios e, até mesmo, escrever as cartas confortavelmente sentada nas escrivaninhas maravilhosas, que ficavam à disposição do público, no saguão de entrada, contendo pincel e cola de excelente qualidade para colar selos e fechar os envelopes, fazia parte de uma rotina regular, para nós, os seres humanos epistolares.

Ainda vou aos Correios. Ainda escrevo cartas e cartões à mão. Ainda frequento bibliotecas. Em Portugal, felizmente, elas são maravilhosas e oferecem espaços e oportunidades de excelente qualidade. Mas, nem é preciso confessar, porque já se faz óbvio e amplamente conhecido, minha militância atual acontece na Internet. E mais: escrevo muito mais no laptop do que com minhas dezenas de canetas (muitas tinteiras, que coleciono com muito carinho).

Mas, de fato, sempre que mando um email que não seja de assunto comercial, sinto-me traindo o verdadeiro tempo da comunicação. Porque, para mim, o ideal é que haja um intervalo entre a emissão e a recepção da mensagem. Espaço que garante a magia. E mais: nada se compara ao ato de abrir um envelope, cerimoniosamente, tentando antever, quase adivinhar seu conteúdo. Por isso a correspondência pessoal é secreta e violá-la equivale a crime, eu penso.

No entanto, este mesmo tempo sagrado, profanado nas urgências modernas e o espaço sacralizado, supervalorizado em iguais condições, fazem-nos, pouco a pouco, repensar nossas posses, nosso direito a estar e, mais que isso a permanecer, em determinado lugar. Já não me sinto mais uma exceção por ser nômade, mas antes uma precursora, num mundo em que a grande maioria das pessoas já vive de cá pra lá. Basta ver a quantidade de empresas de mudanças que surgem a cada dia e a horda de turistas eternos a empurrar malas de rodinhas, mundo afora. O metro quadrado de uma habitação, de um escritório ou de um galpão vale ouro, hoje, da mesma forma que o valor de cada minuto de nossas vidas é computado em moeda internacional.

Pois, de tudo isto, resulta, aos mais atentos, a percepção de que a tal hora da inevitável passagem chegou.

Nos últimos anos, sentindo de perto essa realidade, doei a maior parte de meus haveres. Os livros foram entregues a bibliotecas públicas e a universidades ou doados a alguns dedicados amigos e parentes, que os iriam usar, em breve tempo.

Paralelamente, como autora editada por 4 diferentes editoras, acabei por ir percebendo a ilusão da relação comercial que se estabelece, quando alguém se propõe a comercializar sua obra. No passado, cada exemplar do livro era numerado, de modo a haver controle da quantidade vendida. E cada tiragem correspondia a uma edição. Hoje, os livros são produzidos em série e os autores não têm como acompanhar nem a distribuição, nem a venda. As editoras, por sua vez, declaram-se eternamente em prejuízo e também correm para encontrar o espaço digital como recurso para continuar sobrevivendo.

E eis que, de repente, me vejo, de forma totalmente independente, produzindo e publicando “Vasos Sagrados” como e-book. Uma ousadia, que, no entanto, é totalmente condizente com meu processo.

No ano passado, depois de haver coordenado grupos de leitura e reflexão por mais de uma década, experimentei retomar esse trabalho, por via online. Morando fora do Brasil e querendo atender à demanda que havia para voltar a trabalhar “Mulheres que correm com os lobos”, o magistral livro de Clarissa Pínkola Estés (que foi minha inspiração para escrever “Vasos Sagrados”), concebi um formato de vídeos, postados na Internet e de encontros online periódicos. Alcançamos muito sucesso nesse trabalho e já me vejo ensaiando a repetição dele.

O que virá depois disso? Que é da menina que gosta de desenhar caligrafia e que corre aos correios, nos intervalos? Respondo-lhes que ela vive em mim. É a revisora do processo afetivo de tudo que faço. Não sei dizer se as livrarias sobreviverão, se as editoras imprimindo livros de papel conseguirão superar as crises, se ainda haverá papéis de carta e envelopes à venda, nos próximos anos. Tudo o que sei é que é preciso resistir, encontrando caminhos que nos permitam continuar o processo de comunicação, que nos caracteriza como humanos.

Ainda mais agora, quando já não vivemos em regiões geográficas tão próximas, não podemos nos calar e nossas palavras precisam chegar ao outro, aos outros; precisamos ouvir suas respostas e estabelecer diálogos, pensar e sonhar juntos.  Precisamos continuar contando nossas histórias, oralmente, por escrito, grafadas ou enviadas pela nuvem, nas nuvens, como gosto de dizer. Como o sopro divino – o Anhang dos Anhangs, dos nossos ancestrais.  (21.01.20)

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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