Djanira Silva 15 de março de 2020

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Cheguei ao mundo num tempo que não era o meu, numa casa que não era a minha, numa família que não estava preparada para me receber. Fui condenada à vida num mundo hostil onde as pessoas só sabiam das perguntas, nunca das respostas.
Sentindo-me diferente passei a observar as diferença. Tornei-me dona de uma ousadia capaz de contestar, desafiar, transgredir e desobedecer. Daí, a família e os professores me estigmatizarem com uma frase que, durante muito tempo, me foi lançada em rosto como se fosse um castigo, um crime: esta menina é inteligente. No meu entender, significava – sem controle, sem limites, curiosa, perguntadeira, e, quando convinha, mentirosa. O que eu não sabia ou não entendia, virava uma história contada como se verdadeira fosse. Queria saber de coisas que só as pessoas grandes sabiam. Meu mundo era limitado pelas paredes da cozinha e pelos muros do quintal, quintal onde pensei haver nascido, pois foi lá, onde, pela primeira vez, vi o sol, o céu, as estrelas e o pé de pitanga.
As pessoas grandes só se ocupavam em varrer, fazer comida, reclamar e botar menino de castigo. Não tinham tempo para ouvir os ruídos do mundo nem as perguntas de quem queria saber da vida. Não me deixavam ler livros se não fossem escolares. No colégio tudo quanto se escrevia, fora do assunto das aulas, era confiscado e, algumas vezes, sofríamos punições. Aos poucos senti que havia uma voz dentro de mim clamando por liberdade. Encontrei na desobediência e na sabedoria dos livros, os caminhos para fugir dos limites. Estes caminhos se delinearam quando meu pai, seguindo os ditames da moda, trouxe para casa uma coleção de dezoito volumes, numa pequena estante de madeira, para enfeitar a sala e avisou que aquilo não era brinquedo de criança
Não fosse a proibição talvez eu jamais tivesse me interessado por eles. A Carta de ABC, minha primeira experiência com as letras, deixara-me um ranço contra a leitura, ranço que se acentuou com a troca pela cartilha onde vovô via a uva e a bola era do menino.
Desobedecendo às recomendações, aos poucos fui me aproximado dos livros pretos. Folheei o primeiro e, daí em diante, mesmo lendo com uma certa dificuldade, não mais parei. As gravuras alimentavam minha imaginação. Vi, absorvi e imaginei coisas do arco da velha. Descobri as sete maravilhas do mundo e inventei as sete confusões. Entrei na intimidade de poetas, filósofos, pintores e escritores, reis e rainhas e li os mais belos contos de fadas. Conheci a história de Joana D’Arc, Ana Bolena, Maria Stuart. Minha cabeça, tornou-se um reino mágico povoado por monstros e duendes, fadas e gnomos, um mundo onde descobri que o sol é uma estrela e a lua não é a mãe delas. Os livros pretos me despertaram para um mundo, até então desconhecido, mostrando-me que as paredes do quintal não eram os limites de um mundo que percebi, muito cedo, ser de falsidades.
Então, fiz das histórias daqueles livros, a minha história. Eles sinalizaram meus caminhos. Ainda os tenho comigo. Velhos, desgastados pelo tempo, páginas amareladas, corroídas pelo mofo e pela umidade. Ajudam-me a preservar a criança que vive dentro de mim. Quando esta criança desaparecer ou estarei morta ou terei assumido definitivamente os desencantos da velhice.

Obs: A autora é poetisa, escritora contista, cronista, ensaísta brasileira.

Faz parte da Academia de Artes e Letras de Pernambuco, Academia de Letras e Artes do Nordeste, Academia Recifense de Letras, Academia de Artes, Letras e Ciências de Olinda, Academia Pesqueirense de Letras e Artes , União Brasileira de Escritores – UBE – Seção Pernambuco
Autora dos livros: Em ponto morto (1980); A magia da serra (1996); Maldição do serviço doméstico e outras maldições (1998); A grande saga audaliana (1998); Olho do girassol (1999); Reescrevendo contos de fadas (2001); Memórias do vento (2003); Pecados de areia (2005); Deixe de ser besta (2006); A morte cega (2009). Saudade presa (2014)
Recebeu vários prêmios, entre os quais:

Prêmio Gervasio Fioravanti, da Academia Pernambucana de Letras, 1979
Prêmio Leda Carvalho, da Academia Pernambucana de Letras, 1981
Menção honrosa da Fundação de Cultura Cidade do Recife, 1990
Prêmio Antônio de Brito Alves da Academia Pernambucana de Letras, 1998 e 1999 
Prêmio Vânia Souto de Carvalho da Academia Pernambucana de Letras, 2000
Prêmio Vânia Souto de Carvalho da Academia Pernambucana de Letras, 2010
Prêmio Edmir Domingues da Academia Pernambucana de Letras, 2014

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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