Foi a primeira vez em que, como juiz de direito, fui designado para atuar, como substituto, em outra comarca. Não perdi tempo e me dirigi a sua sede na mesma tarde em que tomei conhecimento da designação. Na saída do fórum, vi, numa calçada, sentado, elegantemente, o vigário local em sua batina preta. Pois bem. Na primeira quinta-feira, a novidade digna de nota se traduzia no recebimento de uma ação penal, conclusa para sentença, já há alguns meses. Avisei que traria a sentença na semana seguinte, surpreendendo a todos. Parecia que prolatar uma sentença era coisa do outro mundo.

Na segunda semana, a notícia da morte do velho vigário. O escrivão queria suspender o expediente forense. Refutei a proposta. Passaria na Igreja, na saída, para prestar minhas homenagens ao ilustre morto, como fiz. Não fiquei para o sepultamento.

Na terceira semana, enfim, o fato extraordinário. Uma senhora queria falar comigo. Conduzida a minha presença, me pediu para retirar a promotora da sala. Impossível.  Não haveria segredo para o juiz da Comarca – e, ademais, eu era daquela mero substituto – que a promotora não pudesse ouvir. Ocorreu silenciosa reação, como se falar na sua presença lhe desagradasse. Deixei-a bastante à vontade: ou seria assim, ou, nada feito. O fórum era acanhado. Juiz e promotor convivendo na mesma sala, de despacho e de audiências, oficiais e não oficiais.

A mulher, enfim, revelou o grande segredo: era filha do vigário falecido. Levantei-me, solenemente, apertando-lhe a mão e dando os meus pêsames, pedindo desculpas por não ter comparecido ao sepultamento. Logo, ela retirou-se. O escrivão, no corredor, ao entrar, me perguntou se era filha do padre falecido. Sim, é, ao que ele acrescentou: a cara do pai. Sopesei o suspense e a verdade estampada no rosto da filha. Depois, soube de toda a história, que desmantelou a vida de um casal, em cidade dali um tanto distante, cada um indo para o seu lado, a mãe com dois filhos do padre que, por sua vez, foi deslocado para outra paróquia. A morte, agora, ressuscitava a paternidade, e, com ela, acendia a disputa de filhos e irmãs do finado em torno do patrimônio deixado. Vitória para os filhos. Final feliz. Viva o amor. 23 de maio de 2019.

Obs: Publicado no Diario de Pernambuco
[email protected]
Membro das Academias Sergipana e Itabaianense de Letras

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


busca
autores

Autores

biblioteca

Biblioteca

Entrelaços do Coração é uma revista online e sem fins lucrativos compartilhada por diversos autores. Neste espaço, você encontra várias vertentes da literatura: atualidades, crônicas, reportagens, contos, poesias, fotografias, entre outros. Não há linha específica a ser seguida, pois acreditamos que a unidade do SER é buscada na multiplicidade de ideias, sonhos, projetos. Cada autor assume inteira responsabilidade sobre o conteúdo, não representando necessariamente a linha editorial dos demais.
Poemas Silenciosos

Flickr do (Entre)laços
[slickr-flickr type=slideshow]