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(Meditação bíblica)

No ciclo da Epifania (manifestação) de Jesus, o chamado da Liturgia do domingo passado foi para contemplarmos o Batismo, apresentando Jesus como o grande e insuperável modelo. Os evangelhos indicam claramente a importância que tem o Batismo na vida cristã, pois todos os quatro evangelistas, de uma forma ou de outra, voltam ao tema. O Apóstolo São Paulo explica a importância do Batismo como símbolo de uma experiência antropológica profunda de mudança de vida, de conversão: é como morrer e passar a viver uma vida nova, é romper com o antigo jeito de viver (“ser humano antigo”) e passar a viver como um “ser humano novo” (cf. Rm 6).

O Evangelho segundo Mateus: Jesus abre novo horizonte ao povo de Deus

O evangelho, produzido pelas comunidades que têm o apóstolo Mateus como patrono, se compraz em relacionar o episódio do Batismo com a pregação profético-apocalíptica de João Batista. Jesus vai ser apresentado no contexto do deserto, cenário que evoca a peregrinação, as provações e as tentações do antigo povo de Deus sob a guia de Moisés (cf. Ex 16; 17; Nm 11; 14; 16; 20; Dt 1; 4; 8; 9). João Batista é como novo Elias, o qual por sua vez é visto como novo Moisés, num tempo em que, sob a monarquia, o Povo de Deus corria o risco de se descaracterizar e perder sua identidade (cf. 1Rs 17-21). O texto insiste no julgamento de Deus sobre Seu povo. A liderança de fariseus e saduceus é severamente criticada. Não basta evocar as glórias antigas: “Temos por pai a Abraão” para sentir-se justificado. É preciso, na verdade, “produzir fruto de mudança de vida”; arrependimento e conversão querem dizer isso. Em outras palavras, “voltar a Deus”, o que se dá quando a vida muda de rumo mediante novas práticas e nova mentalidade. As ameaças se expressam sob imagens fortes: raça de serpentes venenosas, ira, machado já à raiz das árvores, corte e queima no fogo… Deus é imaginado como juiz ameaçador que vem fazer a limpa de Sua roça: com a pá na mão para limpar a eira, recolher o trigo nos celeiros e jogar a palha no fogo que não se extingue.

Nesse contexto negativo e ameaçador, Jesus aparece sendo consagrado para ser novo início do Povo de Deus; assim, aliás, já o apresentava a genealogia (cf. Mt 1, 1-17). João Batista, como novo Elias, é o profeta que denuncia o descaminho a que o povo está sendo levado. Deus decidiu criar um novo povo, mesmo que para isso se exija passar por julgamento e condenação. A visão dos céus com a manifestação (“epifania”) da Trindade divina significa a consagração de Jesus. O Espírito o consagra enquanto mostra que n’Ele se está dando uma nova criação. O símbolo da pomba alude à recriação do mundo mediante a aliança de Deus com o patriarca Noé (cf. Gn 8) Jesus é indicado como novo Homem, recomeço do Povo de Deus, que é declarado “meu Filho amado”, pelo Pai.

O capítulo quarto, das tentações de Jesus no deserto, traz à tona as clássicas tentações enfrentadas pelo povo sob a guia de Moisés. Como novo início do Povo, Jesus deve ser provado e vencer (cf. Dt 8; 9, 9; Sl 91; Dt 6,13. 16). Não é por acaso que na segunda tentação se aluda a “todos os reinos do mundo com o seu esplendor”. O grande engano, sempre denunciado pela corrente profética, foi “tornar-se como todas as nações”, sob o domínio de reis, com renúncia à própria liberdade e a organizar-se segundo os critérios e padrões do Poder Popular (cf. 1Sm 8; Jz 9, 1-15). Para o profeta Samuel romper com a unidade tribal, a organização segundo padrões de igualdade e comunitariedade, era “abandonar” a fé no Deus YHWH, era idolatria. Não se tratava simplesmente da prática de um culto, de uma religião, mas de uma maneira coletiva de viver, que incluía em seu centro o compromisso com economia de partilha, relações sociais de igualdade (mesmo com o limite ainda do patriarcalismo) e poder político popular (cf. Dt 5; 6, 20-25; 26, 1-11; Ex 3, 7-22). A instalação da monarquia foi sempre julgada pelo profetismo como ruptura com o núcleo da Fé (cf. 1Sm 8,1-9). Dai, por que após o exílio em Babilônia o profetismo ressalte a imagem da criança como ideal de governante (cf. Is 7; 9), ou seja, o poder nas mãos de “um povo humilde e pobre” , “que busca a justiça e a pobreza” (cf. Sf 3, 12; 2, 3). O rei (o poder) já não montará o cavalo, montaria dos poderosos, mas o jumentinho, montaria quotidiana dos pobres (cf. Zc 9, 9-10). O filho de Rute se chamará Ebed, que quer dizer “Servo” (cf. Rt 4, 17). “Servo” será a condição de Jesus, segundo a profecia contida no livro de Isaías (cf. Is 42; 49; 50; 52-53). Por isso Jeremias e Ezequiel falam da vinda de um “novo” Davi, mas não se trata do poderoso Davi de Jerusalém, mas do pobre Davi, pastor de Belém, o menor doa filhos de Jessé (cf. 1Sm 16-17), que governa na forma de uma criança capaz de brincar com as ovelhas e até com os animais ferozes (cf. Jr 23; Ez 34; cf Is 11, 1-9).

O Evangelho segundo Lucas: um  povo aberto à universalidade dos povos

A narração do Batismo se abre com a menção do Império romano que domina toda a terra conhecida, começando por Tibério César, o grande imperador. Em sua pregação penitencial, João Batista é apresentado cercado pelas multidões, o que sugere a universalidade de sua mensagem. Reencontramos a linguagem apocalíptica, cheia de ameaças, o que indica que estamos em momento decisivo da História da Salvação. João explicita a mudança que se exige: a partilha do alimento e das vestimentas, ou seja, do que é essencial para a vida de toda a gente: a comida e o abrigo. Os soldados, guardiães da ordem estabelecida, são chamados a renunciar a toda violência, a denúncias falsas e a extorsões em busca de mais ganho (corrupção). Sem dúvida, uma maneira de o Evangelho dizer que se trata de conviver em nova ordem social e política. Será que não é justamente por isso que João é preso pelo rei Herodes? Herodes fora denunciado pela prepotência do adultério, mas o texto acrescenta: “e por causa de todas as más ações que havia cometida”.

A descrição do Batismo é bastante breve. Sugere que Jesus fosse o último a ser batizado. Aliás, a menção da prisão de João já vem antes de batizar Jesus, como se o Batismo não fosse mais a última ação do Batista, mas a primeira manifestação pública de Jesus; a Trindade não se revela com o gesto de João, mas no quadro da oração de Jesus logo após o Batismo. Na cena, há duas notas particularmente originais: Jesus em oração, em profunda comunhão com Deus, traço insistente em todo o texto do evangelho de Lucas. Sem dúvida é um quadro com forte tonalidade teatral. E finalmente o texto relaciona claramente a cena com a Criação de Deus: “Eu hoje Te gerei” (Sl 2, 7). Com Jesus se está gerando um novo mundo. Eis por que vem imediatamente o quadro da Genealogia que não é apenas do povo de Israel, mas de toda a humanidade, chegando até Adão. Jesus é o princípio de nova criação do ser humano. As tentações, lidas nesse contexto, têm Seu significado alargado a denúncia dos sistemas deste mundo, de busca de bens materiais (pão), de riqueza e dominação sobre os povos e, finalmente, de busca da própria glória. É assim que se revela quem pertence ao Diabo, ou seja, aquele que causa divisão. Lucas termina dizendo que “o diabo o deixou até o tempo oportuno” que será justamente o momento da Paixão, quando o anjo virá consolá-Lo (cf. Lc 22, 3. 39-46).

O Evangelho segundo Marcos: Jesus, possibilidade de nova Criação

Marcos inicia com um título no qual cada palavra tem sua densidade própria: “Princípio do Evangelho de Jesus, Messias e Filho de Deus”. “Princípio” é a famosa palavra como começa a Bíblia: “No Princípio criou Deus os céus e a terra”. Vamos ver que Marcos quer efetivamente ligar Jesus à Criação. Ele é o “princípio” da Boa-Nova, não apenas início ou começo. “Princípio”

quer dizer início, começo, mas sobretudo “alicerce”, fundamento”, “causa”, como diziam os gregos, algo que está presente em todo o tempo em que se constrói o edifício. Como a base de uma casa, é o que vem primeiro, mas onde se estiver se está sempre nela, qualquer que seja o lugar e qualquer que seja o tempo. Jesus é a base de toda a caminhada de agora em diante. N’Ele está o fundamento, sobre Ele Seus discípulos e discípulas construirão e continuarão. Vem para Judeus, Ele é o Messias (Cristo, Ungido) e é ao mesmo tempo “Filho de Deus”, categoria religiosa muito comum no ambiente gentio. O evangelista sintetiza os dois mundos como igualmente destinatários da missão de Jesus.

O segundo passo é o cumprimento das profecias: “Conforme está escrito no Profeta Isaías ( cf. Is, 40, 3) aconteceu”: João Batista no deserto… é a voz que anuncia. É a renovação da voz do profeta Elias, o grande lutador das causas de Deus contra os reis de sua época (cf. 1Rs 17 a 22). Logo em seguida diz: “Aconteceu: naqueles dias, veio Jesus de Nazaré da Galileia… ao subir da água Ele viu os céus rasgarem-se e o Espírito como pomba descer sobre Ele..” Vem em seguida a voz do céu a indicar a escolha do Pai, como revelação ao próprio Jesus de Sua vocação: “Tu és o meu Filho…”, expressão que tem por detrás os textos do profeta Isaías: “Tu és o Meu Servo…”

Logo em seguida, Jesus é compelido a ir para o deserto. Mas não se trata simplesmente do deserto das tentações de Israel , a que se referem os textos antigos, de Êxodo a Deuteronômio. De propósito, não há referência a cada tentação, nem se diz que tenha sido tentado ao cabo do jejum de quarenta dias. É o Espírito que O compele ao deserto. “Aí era no deserto quarenta dias sendo tentado pelo Satanás (o Adversário) e vivia entre as feras e os anjos o serviam” . Quarenta dias pode aludir à vida inteira de Jesus (cerca de quarenta anos, o tempo completo de uma vida naquele tempo). Na verdade, o Satanás vai se manifestar ao longo de sua vida, mediante as lideranças do povo: escribas, fariseus, sacerdotes, a gente de Herodes e os governantes romanos e até por Seus discípulos (cf. Mc 8, 33). Como todo ser humano é tentado, mas convive tranquilamente com as feras, essas, emissários das potências infernais que carregam consigo a morte e os anjos estão a Seu Serviço. Não há referência a jejum. Vem-nos imediatamente o quadro paradisíaco da Criação: o deserto transformado em paraíso, os anjos a serviço do Ser humano, o qual convive pacificamente com os animais ferozes. O abismo e as alturas dos céus estão a Seu favor. Sem dúvida, a forma de pomba como símbolo do Espírito alude ao episódio de Noé uma vez terminado o dilúvio. (cf. Gn 8). Achamos aí motivos suficientes para concluir que o Batismo è a manifestação de Jesus como Princípio da nova criação. O Apóstolo São Paulo vai desenvolver com profundidade essa simbologia batismal de “nova criação” e de ser humano novo, ressuscitado para uma vida nova (cf. Rm 5-8).

O Evangelho das comunidades joânicas: Jesus é o Cordeiro (Servo) de Deus

No Quarto Evangelho, insinua-se que Jesus fora discípulo de João Batista (cf. Jo 3, 22-36). Ao formar-se o grupo de Seus próprios discípulos, tem-se a impressão de que os primeiros são Seus companheiros no grupo de João (cf. Jo 1, 35-51). João não é apresentado como batizador de Jesus, sua missão é dar testemunho sobre Ele. Ao ser perguntado por sua identidade, nega ser o Messias, assim como ser a volta do profeta Elias. Compreende-se como “a voz que clama no deserto” para anunciar a chegada do Cordeiro de Deus. Insinua-se claramente que o “Cordeiro de Deus” é uma síntese do Cordeiro Pascal com a figura profética do Servo Oprimido e Vitorioso, de acordo com os Cânticos do Servo segundo o profeta Isaías (Is 53, 1-7). Não temos a narração do Batismo. Em seu lugar, temos o testemunho de João a indicar que Jesus é aquele que “batiza com Espírito Santo”. Na verdade, o Espírito Santo é categoria central nas reflexões do quarto evangelho (cf. Jo 3 e 14-16). É o Espírito Santo que explica a novidade representada pela Igreja cristã, a vida comunitária. Tanto é assim que logo depois do testemunho de João os discípulos começam a se sentir atraídos e buscam Jesus: “Onde moras?” Ou seja, qual é o teu espaço de vida? Qual é o teu mundo? Jesus responde com um convite: “Vinde e vede”, em outras palavras, venham e experimentem, venham fazer parte desse novo mundo. “E eles foram e viram onde morava e permaneceram com Ele aquele dia”, o tempo suficiente para uma nova experiência que deve marcar a vida para sempre. O mesmo que dizer que foram, aproximaram-se e experimentam seu espaço, seu modo de vida. O texto prossegue narrando como os discípulos começam a constituir a “casa” de Jesus. E o método é aquele de “atração” e o momento-auge é a festa das bodas de Caná, o matrimônio divino com a humanidade para torná-la uma nova família na casa em festa, onde o verdadeiro noivo e esposo de “Israel”, o verdadeiro esposo do povo, é Jesus; Ele também é o novo Templo (cf. Jo 2). Toda a narração evangélica será a demonstração dessa identidade profunda. Igualmente o Apóstolo São Paulo vai dizer com toda a força que o Templo já não é mais aquele das religiões, mas as pessoas em sua vida quotidiana em todas as suas dimensões (cf. Rm 12, 1-2): relações e estruturas ecológico-econômicas (“oíkos-eco” quer dizer “casa”: a “lei da casa” de acordo com a “lógica da casa”); relações e estruturas sociais; relações e estruturas políticas; relações e estruturas culturas, e a religião se situa no topo dos valores culturais, pois se trata de buscar nos deuses a aprovação suprema de nossos valores e normas de vida. A Fé, por sua vez, situa-se noutro plano, o de nossa identidade mais profunda, nosso processo de nos tornarmos “imagem e semelhança” de Deus (cf. Gn 1, 26-27) para agirmos em Seu Nome, à maneira de Jesus (cf. Jo 5; 14-17; 1Jo).

Obs: O Autor é Bispo Emérito da Diocese Anglicana do Recife
Igreja Episcopal Anglicana do Brasil – IEAB….
É Teólogo e Biblista
Assessor do CEBI, de lideranças de Comunidades Eclesiais de Base e de Escolas de Fé e Política

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Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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