O primeiro passo da minha jornada como médico teve início quando fui aprovado no vestibular do curso de Medicina da Universidade Federal de Sergipe. Seis anos depois, em dezembro de 1975, com diploma em mãos, pensei que estava preparado para enfrentar um ambulatório e resolver os problemas de saúde de quem buscasse ajuda. Tomado por sensação de completo bem-estar, tracei metas pessoais e profissionais a serem alcançadas: esposo dedicado, pai amoroso e profissional competente, entretanto, logo percebi que meu entusiasmo era bem maior do que meus conhecimentos e minha sabedoria.

Medicina é uma ciência milenar em evolução constante e o médico, para alçar voos longos, precisa de atualização permanente através de leituras científicas, aulas, palestras, seminários, cursos e congressos. A pluralidade de queixas dos diversos pacientes com a mesma doença, foi suficiente para transformar um sonho num pesadelo infinitamente assustador, dentro de uma realidade cheia de dificuldades e desapontamentos. Foi fundamental arregaçar as mangas, disciplina e um esforço imenso e contínuo, para superar degrau por degrau, conhecimentos simples e modestos da época da formatura. O treinamento continuado, reduzia, a todo momento,  a insegurança e o medo que habitavam dentro de mim.

Durante um plantão, fui chamado pela sala de emergência, para atender um adulto jovem contido por familiares. Aparentava 25 anos, robusto, muito agitado, traços de raiva na face e comportamento físico agressivo. Contorcia o corpo e mexia as pernas e os braços de forma contínua para agarrar uma das cadeiras da sala. Parecia um jacaré sendo retirado do manguezal. O cenário de risco produzido pelo paciente, potencialmente violento, não nos permitia colher uma história atual ou pregressa minuciosa, para um diagnóstico definitivo e resolução segura do problema. Nessa situação, em que o paciente não sabe os sinais e sintomas que lhe acometem, os acompanhantes fornecem dados extremamente úteis para a tomada de decisões. Sua esposa fez um relato breve: “ele é um homem retraído, amável, carinhoso e bom marido. Vez por outra reclama de esquentamento na cabeça, fadiga, pouca concentração e dificuldade em adormecer, porque seu juízo não para de pensar. É homem de poucos amigos, muito econômico em enxerimento e sibiteza e não sai nos finais de semana. No entanto, o mar de almirante não é eterno e, de um dia para outro, ele começa a falar alto, vestir camisas coloridas, usar perfume forte, fixador brilhoso no cabelo e calçar havaianas, com meias. Passa a ser importante, poderoso, expansivo, gasta o salário na primeira semana, dirige em alta velocidade, quer fazer sexo várias vezes ao dia e quebra as louças dentro de casa. Essas coisas ocorrem quando o Satanás se apodera de seu corpo. E, nessa circunstância, é essencial enfatizar que só o Padre Isaac tem poder para realizar a libertação, mas hoje, o vigário não pode fazer a sessão de descarrego, porque vai celebrar uma missa com o corpo do defunto presente e depois acompanhar o féretro até a cova”.

Não há embasamento lógico para Deus ou o Diabo assumir o corpo de uma pessoa, nem alicerce para um padre afastar o mal e introduzir o bem em quem está “possuído”. São crenças presentes nas subculturas com níveis baixos de escolarização, onde se vive em empobrecimento  crítico e marginalização cientifica, sem acesso às necessidades básicas humanas. As populações que residem em lugares de baixo nível de desenvolvimento humano, quando manifestam delírios e alucinações por doenças psiquiátricas, são sensíveis à sugestionabilidade e hipnose.

A religião exerce forte influência nas pessoas que residem nos lamaçais da civilização, nos que acreditam ser a morte uma eventual interrupção da vida e que os humildes serão recompensados na vida após a morte. Infelizmente, no Deuteronômio (um dos livros da Bíblia Sagrada) está escrito que Deus pune com loucura, cegueira e espanto do coração quem transgredir seus mandamentos. Nesse livro, encontramos também, regras sobre escravidão, captação e sexo com escravas, proibição de misturas de raças e medidas a serem aplicadas à noiva difamada. A noção de que a doença é uma punição divina permanece viva na África e na América Latina, onde falta ciência e sobram cultos, missas e poesias. Outra desgraça foi O Martelo das Bruxas, um dos livros mais odiosos que a humanidade conheceu e que a Igreja abraçou com ganancia anti-social. Escrito por dois monges Dominicanos possuiu valor inestimável para o catolicismo implantar medo e suprimir oposição. Servia de manual para identificar, perseguir e torturar mulheres feiticeiras e magas, na suposição de que elas possuíam poder para decepar braços e pernas apenas com o olhar. Era suficiente uma denuncia anônima, a maioria um cartaz pregado à escondida, na porta de uma igreja, e a mulher seria punida. A sentença condenatória incluía: surra em público, expulsão da cidade, prisão perpétua e morte com requinte de perversidade.  Milhares de mulheres foram assassinadas pela justiça divina.

 Na ausência do Padre Isaac, assumi a árdua tarefa de realizar o exorcismo mesmo sem Bíblia, reza forte, crucifixo, água benta, santinho bento, terço, hóstia consagrada e sem gritar “em nome de Jesus! Sai Diabo”. É importante ressaltar que jamais acreditei que os símbolos sagrados possuíssem poder semelhante ao conteúdo da seringa que eu tinha em mãos (neozine, fenergan e diazepan). Alguns minutos após a aplicação endovenosa, observou-se progressivamente um relaxamento completo do “possesso”: a face de furor cedeu, as pálpebras caíram, os membros relaxaram e o “demônio” dormiu em sono profundo.

Avisei à família que não se tratava de uma fraude, mas sim do emprego clínico moderno de medicação eficaz para afastar Deus ou o Satanás dentro de qualquer pessoa. A resposta extraordinária ainda não foi suficiente para o dispositivo do ritual ser patenteado porque os dominadores preferem que continuemos com os métodos nativos.

Aracaju 13/12/2019

Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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