Frei Betto 15 de fevereiro de 2020

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Sou filho da mãe. A minha, Maria Stella Libanio Christo, era mestra na arte de cozinhar. Autora de livros de culinária, pesquisou três séculos de receitas para publicar “Fogão de lenha – 300 anos de cozinha mineira”.

Ela nunca sofisticou o cardápio. Preferia o trivial: bolinho de feijão, canjiquinha com costelinha de porco, feijão tropeiro, inhame com melado, espera-marido. Assim como certas linhagens familiares se estabelecem pela audição, como na família Caymmi, no meu lado materno predomina o paladar. A mesa, ainda hoje, é o centro vital de minha família.

Minha avó materna, Maria, pilotava admiravelmente seu fogão de lenha, acolitada pela doce Bertula, cozinheira que fazia parte da família. Especialista em roscas-de-rainha e balas delícias, vovó preparava a massa das roscas em grandes tabuleiros negros, trançadas como em ninho de serpentes e, após assadas, a superfície se cobria de um brilho castanho, açucarado, como se envernizadas. Não se partia com a faca; arrancavam-se pedaços com as mãos, seguindo o contorno das tranças.

As balas delícias, brancas como neve, eram enroladas e cortadas à tesoura sobre a grande mesa de madeira da copa. Açucaradas, desmanchavam na boca. As receitas se transmitiam de mãe para filha em engordurados cadernos preenchidos com letras bordadas a mão.

Ter sido educado à mesa faz com que o paladar seja o mais apurado de meus cinco sentidos. Nunca fui de comer muito. O peso jamais me incomodou. Nem exijo comidas refinadas. Habituado à vida conventual, espartana, só em casa de amigos ou restaurantes faço da mesa uma liturgia de prazer. Ou quando cozinho.

Há tempos viajei à Suécia com um grupo de líderes sindicais. Submetidos à culinária escandinava, me confessaram sonharem com um bom bife. Os anfitriões nos levaram a um dos melhores restaurantes de Estocolmo, onde nos serviram filé mignon. O pior de toda a minha vida. A carne, dura, parecia ter passado imediatamente do freezer ao prato, após breve aquecimento. Porém, a vontade era tanta que não rejeitamos a gororoba. É melhor um bife no bucho que dois bois no pasto.

O ser humano é o único animal que manipula, tempera e cozinha o seu alimento. Comer é um ato cultural, litúrgico. Assim como falamos distintos idiomas, comemos pratos que outros povos abominam só de ouvir falar. Segundo o antropólogo Marvin Harris, no Camboja comem-se coleópteros, como besouros e joaninhas, baratas d’água, tarântulas, lagartixas e morcegos. No Vietnam, cobras e cães. Na Nova Guiné, vermes do saguzeiro, duros por fora e cremosos por dentro. Na China, miolo de macaco. No México, os escamoles são feitos com ovos de formigas. Vale lembrar o que dizia Montaigne, “cada qual denomina barbárie aquilo que não faz parte de seus costumes”.

 Hoje o mundo produz mais alimentos do que consome e, no entanto, a fome atinge 820 milhões pessoas, que dispõem de menos de 1.500 calorias/dia, segundo a ONU (2019). Para uma vida saudável, o ser humano necessita ingerir 2 mil calorias/dia. No Ocidente, a média é de 2.900. Um terço da população mundial consome cerca de 2 mil. E um bilhão de pessoas têm peso acima do normal.

A ingestão de alimentos suscita, hoje, acalorados debates. Há argumentos para consumir ou não todo tipo de comida. Os vegetarianos se dividem em ovolactovegetarianos. (não consomem nenhum tipo de carne, frango, peixe ou frutos do mar), mas consomem laticínios e ovos; os lactovegetarianos; os vegetarianos estritos; e os veganos (que não consomem nada de origem animal).

Isso não isenta de riscos os ortoréxicos, obcecados por alimentos saudáveis, pois verduras contêm pesticidas; peixes, mercúrio e plásticos; açúcar causa diabetes; manteiga aumenta o colesterol etc. Ou seja, morre-se também pela boca. E no sistema econômico prevalente em nossa sociedade, os alimentos têm valor de troca, e não de uso, e o lucro reluz acima da saúde humana.

Obs: Frei Betto é escritor, autor de “Comer como um frade – divinas receitas para quem sabe por que temos um céu na boca” (José Olympio), entre outros livros.

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