Frei Betto 1 de janeiro de 2020

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Sei o que experimentou Jacó ao duelar com o anjo. Enfrentei-o quando me faltou chão aos pés e, no horizonte, o sol se apagou aos meus olhos. A escuridão invadiu-me, devorou-me a razão e, logo, todo o meu ser. Por fim, dragão insaciável, tragou-me a identidade.

Mergulhado na noite, exilei-me em dúvidas. No início, senti-me sugado pelo abismo. Tudo em volta se volatilizou. Entrei em queda livre num poço sem fundo. Todas as minhas certezas se evaporaram, meu mapa converteu a geografia em hermético labirinto, minhas crenças professaram a negação de toda fé. Cego, viajei em espiral alucinada, acorrentado à desrazão da insensatez. Sufocava-me o afluxo da vida em despropósito. Náufrago em um oceano vazio, ocupei o lugar de Jonas no ventre da baleia.

Não há sofrimento maior do que perder-se de si torturado pelo esplendor da lucidez. Quem me dera que, naquela noite escura, fosse eu tomado pela sadia loucura dos atropelos irreversíveis da mente. Quisera, qual demente, estar fora de mim, sem a consciência do banimento ontológico. E apoiar-me em qualquer uma das referências que, até então, me haviam servido de marco: um sonho, um encantamento, uma crença. Ao menos um ruído, como o apito do trem que cortava a minha cidade, e ainda hoje me atravessa a nostalgia do coração. Nada me consolava. Havia apenas o caos primordial antes que Javé despertasse de seu sono eterno e, distraído, tropeçasse na ideia de criar o mundo.

Deu-se, então, o início do aprendizado. Primeiro, a consciência de que era preciso fazer a travessia. Jogar-me na correnteza sem a menor noção de quão distante se encontrava a margem oposta. Caminhar rumo ao plexo solar. Desatar os nós. Mergulhar no abismo infindável, atirar-se do trapézio com olhos vendados, empreender a ousada viagem rumo ao nada, apoiado apenas pelo fio de esperança de que, lado de lá, me aguarda – não o que chamamos de morte, e sim o que a fé aponta como plenitude da vida.

Caminhei na senda escura com a mente assaltada por fantasmas que, nela, suscitavam desde as mais pavorosas fantasias ao hedonismo desenfreado. Desprendida da alma, a imaginação cavalgava, alada, o carrossel da luxúria. A razão desalinhou-se, as ideais esvoaçaram, os propósitos atolaram-se na lassidão do espírito fenecido.

Foi preciso ficar de joelhos e, reverente, escutar o silêncio. Como Elias, não aguardar o trovão, o rugir dos ventos, a voracidade flamejante do fogo. Apenas a brisa suave, assim como o navegador, finda a borrasca, recebe contente a chegada da calmaria. Mas isso custa. É inesperado. Para chegar lá, urge amansar leões e conviver, destemido, no ninho das serpentes. E saber perder. Vão-se as ilusões, as máscaras, e aquele outro que insiste em se disfarçar de eu. No fogo do desassombro, todas as falsas verdades são lentamente queimadas. Então, instaura-se a nudez. É a hora da vertigem.

No duelo com o anjo, apenas nesta hora da vertigem me dei conta de que não brotava de mim as forças que me faziam aproximar da terceira margem do rio. Alguém soprava o vento que me impelia adiante. Alguém movia as águas. Essa consciência de que estranha energia me impulsava, sem que eu pudesse identificá-la, tornou-se aguda.

Ao perder de vista a margem que deixara sem, no entanto, vislumbrar a oposta, a queda transmutou-se em ascensão; o abismo, em montanha; a vertigem, em enstase. (Atenção editor: o termo, teológico, é este mesmo, enstase, e não êxtase)

O anjo depôs armas, afastou-se da porta do Éden e deixou que Ele se me apossasse. Fiquei visceralmente apaixonado. Tudo em mim e à minha volta transluzia amor. E nada me atraía mais fortemente do que perder tempo na alcova. Outra coisa eu não pensava nem queria ou desejava do que sentir-me abrasado de amor. As entranhas queimavam; o peito ardia em febre; a mente, calada, observava a razão tragada pela inteligência. Eu me encontrava em alguém fora de mim e que, no entanto, se escondia no recanto mais íntimo do meu ser e, de lá, projetava a sua luz sem se deixar ver ou tocar.

Artigo originalmente publicado no jornal O Globo.

Obs: Frei Betto é escritor, autor de “Um Deus muito humano” (Fontanar/Companhia das Letras), entre outros livros.

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