Num dos mais pungentes poemas que o Padre José (veja meu texto anterior, intitulado: ‘quando Helder Camara capta da dor do mundo’) dita ao Bispo Helder – um poema traspassado de compaixão e tristeza – a igreja católica aparece como um ‘velho portão enferrujado’:

Velho portão enferrujado
Que já perdeste a memória
De abrir e fechar
E te espantas com a chave
Gostaria de abrir-te
Pela paixão que sinto
De ver portas e portões escancarados.
Mas devo respeitar o teu repouso,
A tua ferrugem, a tua segunda natureza
Que quase te transforma
Em muro (Carta Circular 2-3/03/1965, II,II, p. 238).

Escrito no início de março de 1965, um ano depois da posse de Helder Camara como Arcebispo de Recife, esse poema sintetiza dolorosamente a impressão que ele guarda de seu primeiro ano no ofício. Por mais que Helder o puxe ou empurre, o velho portão não deixa passar os pobres. Helder se lembra que, no Vaticano, os guardas suíças deixam passar cardeais, arcebispos e bispos, mas estendem a lança para impedir a entrada de pessoas não credenciadas. Ele se lembra das alucinações de 1962, quando viu o Imperador Constantino atravessar a galope a Basílica de São Pedro. Imagens confusas de procissões, mitras e estolas, grandiosas cerimônias na Basílica de São Pedro.

Helder, que sente paixão de ver portas e portões escancarados, mesmo assim deve respeitar o repouso do portão enferrujado, sua ferrugem, sua segunda natureza. Um portão que quase se transforma em muro, de tão desacostumado a dar passagem, que fica espantado pela chave, como se se tratasse de arma que pudesse ferir.

O Padre José bem sabe que chaves, para Helder, servem para abrir, não para fechar. Isso ele já sabe desde 1947, quando dita a Helder ainda simples sacerdote um poema atravessado pela paixão de abrir e acolher:

Senti-me triste comigo
Surpreendendo-me
com um molho de chaves na mão.
Se todos somos filhos do mesmo Pai
Para que fechar
O que deve ser comum?
Senhor,
Que ao menos meu coração
Não tenha portas,
Nem ferrolhos,
Nem chaves.
Que ao menos minha alma
(Vigília 16-17/01/1947. Acervo do Instituto Dom Helder Câmara [IDHeC], Recife).

A dor da igreja, sentido por Helder, não se deve ao fato que ela perde fiéis para as igrejas evangélicas, nem ao fato que muitos a abandonam e se declaram ‘sem religião’. Ele sente dor por experimentar que o velho portão enferrujado já não está escancarado a todos os meus irmãos. Para que fechar o que deve ser comum?

Helder Camara não é sociólogo nem historiador, mas suas imagens e intuições merecem a atenção de sociólogos e historiadores. A imagem da ferrugem (velho portão enferrujado), por exemplo. Os químicos dizer que o ferro é um material ‘de transição’. Exposto ao ar e à umidade, se corrói e tende a voltar ao seu estado mineral original. A ferrugem é sinal de uma volta ‘às origens’. Do mesmo modo, quando uma igreja ‘enferruja’, ela sinaliza uma tendência de voltar à sua origem, ou seja, a um projeto eclesiástico formulado ao longo de um período que vai mais ou menos do século IV ao século XIII, assentado sobre o princípio do consenso clerical (veja um texto meu publicado neste blog em 07/08/2018, intitulado ‘A cortina eclesiástica’).

A imagem do velho portão enferrujado pode chocar, mas retrata uma realidade vivida no dia-a-dia. Queiram ou não seus responsáveis atuais, a igreja tende a retornar à sua origem, aos tempos medievais. É doloroso perceber isso, como é doloroso sentir o pouco que se faz para reverter a situação.

Preparando-se a participar da quarta e última sessão do Concílio Vaticano II, o Arcebispo de Recife recebe mais uma visita do Padre José, que lhe dita o seguinte poema:

Sonhei que o Papa enlouquecia
Ele mesmo ateava fogo
Ao Vaticano
e à Basílica de São Pedro.
Loucura sagrada,
porque Deus atiçava o fogo
que os bombeiros, em vão,
tentavam extinguir.
O Papa, louco,
saía pelas ruas de Roma,
dizendo adeus aos Embaixadores
credenciados junto a Ele,
jogando a tiara no Tibre,
espalhando pelos pobres
o dinheiro todo
do Banco do Vaticano.
Que vergonha para os cristãos!
Para que um Papa
viva o Evangelho,
temos de imaginá-lo
em plena loucura! (Carta Circular 18-19/02/1965, II, II, p. 192).

Um poema realmente louco. Fala da loucura sagrada de um papa que joga a tiara (papal) no Rio Tibre, ateia fogo no Vaticano, diz adeus a todo o aparelhamento diplomático que o cerca e espalha pelos pobres o dinheiro todo do Banco do Vaticano. Loucura total. Não se sabe quem é realmente louco, se é o papa ou o Vaticano. O poema é claro: o Vaticano é um desvio, um caminho equivocado, uma loucura. É a prisão do papa. Louco não é o papa que joga a tiara no Rio Tibre, louco é o papa que a ostenta. Louco não é o papa que espalha pelos pobres o dinheiro todo do Banco do Vaticano, louco é quem acredita que um papa necessita de um banco para governar a igreja. E assim por diante.

Aqui vai exposta, de modo pungente, a dor da igreja: que vergonha para os cristãos: para que um Papa viva o Evangelho, temos de imaginá-lo em plena loucura! Os católicos não sabem por onde se virar, se admiram tal ou tal papa que lhes parece bom, se rejeitam o papado de vez ou se atribuem sua dor a ver o papado tão vinculado à burocracia eclesiástica clerical. Não enxergam claramente onde está o nó da questão, o que Vaticano realmente representa nisso todo, pois as informações que recebem costumam andar envoltas pela hipocrisia que costuma envolver as informações que vêm de Roma.

Por que o papa não se desvincula do Vaticano? Por que ele não vai morar numa paróquia em Roma? Helder fala sério, pois ele mesmo, três anos depois de compor o poema que aqui comento, em 1968, se muda do Palácio Episcopal de Recife para uma sacristia. Mesmo assim, ele tem de se apresentar como um Dom Quixote para dizer algo que tenha impacto. Em vigílias angustiadas, o Padre José segura as rédeas do cavalo Rocinante no momento em que Dom Quixote penetra na Basílica de São Pedro. Ele está triste. Não irrompe a galope no recinto sagrado (como o Imperador Constantino numa alucinação de Helder Camara que data de 1962), mas mantém a lança em riste, pronto a investir contra qualquer um que se atreva a dizer que a Basílica de Roma é a casa de Deus.

O Padre José fala sem rodeios: o papa tem de sair do Vaticano, renunciar ao poderio sobre o Estado Vaticano, deixar de ser reconhecido como soberano pelos poderes políticos do mundo, renunciar ao ‘primado de poder’, assumir o ‘primado do amor’ (como recomenda o evangelho), renunciar a modos capitalistas de administração financeira, não se apresentar como ‘infalível’, não impor sua opinião, não se elevar acima dos demais. Assim será de novo o ‘bispo de Roma’, o primeiro entre iguais, bispo entre bispos, sendo o primeiro por viver na cidade onde – segundo a tradição – o primeiro dos apóstolos estaria enterrado.

Em novembro de 1964, ao participar em Roma da terceira sessão do Concílio Vaticano II, o Arcebispo recorda dolorosamente que, em Recife, ele vive com Deus na casa da Mãe Igrejagovernada pela sogra:

Senhor, assim como o esposo leva a jovem esposa
Para uma casa que ela não conhece, governada pela sogra,
Tu me trouxeste para viver contigo
em casa da Mãe Igreja (Carta Circular 29-30/11/1964, II,II, p. 44).

Três meses depois, já de volta em Recife, as mesmas imagens doloridas. Deus lhe parece um padrasto. Pior: um sádico, um torturador:

Que estranho gosto possuis
de parecer Padrasto
quando Te sei
tão profundamente Pai?
Tu me deixas
sem saída e sem resposta.
Jamais Te senti um sádico
às gargalhadas
enquanto nos contorcemos
nas torturas que nos preparas.
O incrível,
em certas circunstâncias,
é o teu silêncio,
o teu mutismo,
quando uma palavra tua
um simples som,
mudaria tanto travo
em alegria interior. (Carta Circular 18-19/02/1965, II, II, 192).

O Arcebispo sofre a pior tortura: o silêncio de Deus. Ele ainda terá de passar por muitos anos pela prova da dor, da incompreensão e do silêncio de Deus para, finalmente, em 1978, na idade de 69 anos, encontrar a ‘igreja em saída’ (como se expressa o atual Papa). Mas isso já é tema de um próximo texto.

Por enquanto junto aqui algumas palavras baseadas num texto do teólogo espanhol Xavier Pikasa (acessível pela Internet), que consideram o que o abandono do Vaticano pelo papa pode significar para a igreja católica. Deixar o Vaticano não significa desprezar o papado nem o Vaticano, mas criar novos horizontes. Nada contra um Vaticano que atue como cúria diocesana do bispo de Roma. Mas há de se soltar o papa, ele excede de longe o Vaticano. Por sua autoridade moral, está em condições de lançar pontes de diálogo entre as culturas do mundo, de ser um sinal concreto da universalidade e da comunicação entre os habitantes da terra, em nome do evangelho. Alguém cujo trabalho consiste em tecer solidariedade, acolhida, fraternidade, sempre segundo a mensagem de Jesus.

Pois passaram os tempos dos grandes chefes religiosos, desde os Sumos Sacerdotes de Jerusalém até os Sacerdotes Sagrados do Egito, do México e de muitos outros lugares. O fato do papa se apresentar, no mundo de hoje, como o único a se manter nessa posição de ‘grande chefe religioso’, não é um bom sinal. Isso pode alisar a vaidade dos católicos, mas é contraproducente. Pois a experiência do passado demonstra que a concentração de um poder religioso nas mãos de uma só pessoa não é precisamente a melhor forma de divulgar na humanidade uma mensagem, por valiosa que seja. Pelo contrário, a história mostra que a melhor divulgação de uma mensagem de valor, como a do evangelho, está na superação do poder. Que o diga Jesus em sua conversa com o Grão-Inquisidor no subsolo da Catedral de Sevilha, no famoso episódio do romance ‘Os Irmãos Karamazov’ de Dostoievski.

O Padre José dita e Helder escreve:

Deus atiça o fogo que devora o Vaticano.
Os bombeiros tentam em vão extinguir um fogo sagrado.

Um fogo que consume projetos de poder. O ‘poder do papa’ não é o poder de um homem situado acima dos demais, mas o poder da ‘graça de Deus’. A revolução cristã se opera fora dos círculos do poder, em trabalhos de base. No momento em que conferências episcopais, dioceses e paróquias passam a se organizar ‘sinodalmente’ (outra expressão do atual Papa), sem recorrência a um poder que viria de cima, as coisas começam a funcionar a contento. Assembleias e encontros criam uma igreja oriunda de um diálogo continuado.

Está claro: se os católicos quiserem agir como cristãos, eles têm de sair de instituições ‘imperialistas’ de poder, dominadas pelo capitalismo, para voltar a caminhar nas intempéries da vida, com todos e todas que esperam dias melhores.

Obs: O autor : “Nasci em Bruges, na Bélgica, no ano de 1930. Estudei línguas clássicas na universidade de Lovaina e teologia em preparação ao sacerdócio católico, entre 1951 e 1955. Em 1958 viajei ao Brasil (João Pessoa). Fui professor catedrático em história da igreja, sucessivamente nos institutos de teologia de João Pessoa (1958-1964), Recife (1964-1982), e Fortaleza (1982- 1991). Sou membro fundador da Comissão de Estudos da História da Igreja na América Latina (CEHILA), fui coordenador para o Brasil entre 1973 e 1978, responsável pelo projeto de edições populares entre 1978 e 1992, e entre 1993 e 2002 responsável pelo projeto “História do Cristianismo”. Entre 1994 e 1997 fui pesquisador visitante no mestrado de história da universidade federal da Bahia. Durante esses anos todos administrei cursos e proferi conferências em torno de temas como: história do cristianismo; história da igreja na América Latina e no Brasil; religião do povo. Atualmente estou estudando a formação do cristianismo nas suas origens, especificamente os dois primeiros séculos.”

Explicação do painel(foto)

O autor é o primeiro à direita.

“O painel do fundo, é um quadro desenhado pela Irmã Adélia Carvalho, salesiana (Filha de Maria Auxiliadora) de Recife e ‘artista da caminhada’, que tem muitos trabalhos na linha de uma Igreja libertadora e colabora em diversos programas de conscientização pela arte.
O tema do quadro pode ser descrito assim: ‘a proposta cristã na confusão do mundo em que vivemos’.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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