(professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio,
decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio *)
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Dirá o leitor que muito já se falou e escreveu sobre o filme de Fernando Meireles, “Os dois Papas”. E tem razão. Trata-se, porém, de assunto importante, não só pela relevância que ainda têm a Igreja Católica e o Cristianismo, especialmente no Ocidente. Mas também pelo fato de que hoje Francisco de Roma é o único líder mundial capaz de chamar a atenção de pessoas de dentro e de fora da Igreja que governa; e de convocar mentes e corações urbi et orbi.
Não surpreende, portanto, que um filme sobre sua pessoa desperte interesse e suscite diversas leituras e opiniões. Destaco entre os muitos comentários feitos aqui e ali o magnífico texto de Leonardo Boff, recentemente publicado. Destaco igualmente impressões de alguns ateus, jornalistas e intelectuais, maravilhados com o filme. Não destacaria tanto os comentários de algumas figuras de dentro da Igreja que conseguem ver nesta obra cinematográfica de inegável valor apenas inexatidões e parcialidades.
Desde o início, o diretor adverte: este é um filme de ficção baseado em fatos reais. Assim como a literatura, toda arte, inclusive a sétima, tem compromisso com a verossimilhança, e não com a verdade tal como é entendida filosoficamente. Sendo assim, a ficção construída a partir da história e seus fatos é perfeitamente legítima. Mesmo quando o assunto é a instituição do papado e a figura do pontífice e supremo pastor da Igreja Católica.
Conheci muito breve e superficialmente o cardeal Joseph Ratzinger. Um cordial aperto de mãos por uma vez. Posteriormente, em 2012, fui convidada a apresentar em Roma seu recém lançado livro sobre a infância de Jesus. Aí cumprimentei o Papa Bento XVI, que três meses mais tarde deixaria o mundo perplexo com sua renuncia à sé de Pedro. Porém, anteriormente a tudo isso, conheci a teologia de Joseph Ratzinger. Estudei por seus livros e tive contato com seu pensamento. Trata-se, inegavelmente, de um teólogo profundo e refinado.
Sua atuação à frente da Congregação para a Doutrina da fé suscitou sentimentos controversos e conflitivos na Igreja pós-conciliar. Entre os vários processos a que foram submetidos diversos teólogos de todas as latitudes durante sua presidência, o de Leonardo Boff foi por mim vivido mais de perto devido ao fato de ser um teólogo brasileiro e amigo pessoal. O mesmo Boff, porém, com extrema elegância, defende sua atitude correta e sua boa-fé no texto acima mencionado, mostrando que todo juízo sobre fatos e, sobretudo, sobre pessoas deve ser prudente e matizado.
Encontrei o cardeal Bergoglio duas vezes, em Buenos Aires. E ouvi narrativas e comentários não muito airosos sobre sua conduta durante a ditadura argentina, coisa que o filme de Fernando Meireles retrata fielmente. Não deixa de sublinhar, no entanto, a dificuldade que implicava naquele momento a circunstância de ser superior provincial de uma ordem como a Companhia de Jesus. Bergoglio tomou as decisões que lhe pareceram acertadas. Porém, sua biografia ficou marcada por esse fato. E quando anunciaram sua eleição confesso que senti muito temor, ao recordar o que me haviam dito amigos da Argentina sobre sua pessoa e atuação.
O tempo imediatamente posterior à sua eleição encarregou-se de dissipar meus temores. Diante de meus olhos via uma figura rica e perita em humanidade que pedagogicamente ia marcando o caminho de seu pontificado com gestos secundados por palavras que anunciavam novos tempos para a Igreja e para a instituição do Papado.
Parece-me que o filme de Fernando Meirelles mostra isso com muita felicidade. Com Francisco, o papado deixa de ser uma instituição difusamente divina e bem pouco humana para mostrar sua face encarnada, compassiva e aterrissada na realidade. O mate, o futebol, a pizza, o tango são a configuração do papa argentino que veio do fim do mundo e procura desde sua eleição trazer a Igreja de volta ao Evangelho e ao Concílio Vaticano II.
O filme é justo com Bento XVI, parece-me. Mostra o mais importante de seu legado: a lucidez da renúncia para abrir caminho a outro que pudesse lidar com os enormes problemas da Igreja. E também é justo com Francisco. Mostra seu perfil consciente dos próprios limites, mas ao mesmo tempo cheio de destemor ao se lançar na empreitada de fazer a reforma da instituição que governa.
O pontificado de Francisco é um convite a todos nós, católicos, a jamais duvidar da assistência do Espírito Santo à Igreja. O filme de Fernando Meireles ajuda esse permanente ato de fé.
Obs: Maria Clara Bingemer é autorade“Mística e Testemunho em Koinonia”(Editora Paulus), entre outros livros.