Na infância não viveu em ambiente feliz, entre flores e cores bonitas, com pai e mãe separados na mesma casa. Ele, viciado em álcool era frequentador assíduo dos bares e boates dos subúrbios da cidade, durante as madrugadas e muitas vezes só retornava para casa, conduzido por amigos, quando o dia já estava claro. Embriagado pela cachaça, delírios e alucinações, dava ataques de gritos e fazia ameaças agressivas à família. O vício lhe causou cirrose hepática e morte precoce, antes de o filho concluir o curso fundamental menor.
Ivan, usou chupeta e fraldas até os cinco anos e cresceu na companhia da mãe e duas tias. Conheceu apenas a escola pública, a igreja, as quadrilhas de São João, as feirinhas de Natal e a Faculdade de Ciências Sociais. Tornou-se adulto sem experimentar uma noite num bar ou num cabaré, e jamais sentiu o sabor adocicado e sensual do ar noturno. Seu coração, seu espírito e sua natureza foram esculpidos, pela força dominadora da mãe, que na infância e adolescência, lhe transmitia carinho e proteção de recém-nascido, e, na fase adulta o doutrinava e o catequizava para o juízo final e a vida eterna após a morte. Dependente das orientações e intervenções maternas, temia ficar sozinho e por sentir-se tímido, ansioso e medroso, evitava conflitos. Nomeado em concurso público, mesmo sem estar preparado para enfrentar o mundo, viu-se obrigado a separar-se da família para assumir as funções de assistente social no Instituto Nacional de Previdência Social, na Capital do Estado, enquanto sua mãe, ratazana de igreja, passou a cuidar do padre e da casa paroquial.
Um belo dia, no trabalho, Ivan foi apresentado a Marcela, uma universitária de 23 anos que desenvolvia uma pesquisa para monografia de conclusão do curso superior. De repente, surpreendia-se a olhar nos olhos dela, admirando seu jeito divertido e seu talento. Sua beleza parecia montada em programa de computador e possuía todas medidas harmoniosamente proporcionais. Mulher de hipersexualidade, “ovelha negra” de uma família em decadência social e econômica, cultivava um sistema de valores e crenças facilmente esquecido, quando seus níveis hormonais atingiam o auge. Possuía órgãos genitais sempre alertas e em sintonia com a natureza, prontos para uma explosão de prazer. Excitava-se facilmente, bastando cruzar as coxas e friccioná-las uma sobre a outra e os impulsos e motivações para o sexo tornavam-se incontroláveis e logo afloravam: calor em seu corpo, sabor afrodisíaco em seu hálito, enrijecimento dos seios e suavidade no toque de suas mãos. Essas manifestações anunciavam cio intenso e feminilidade nunca satisfeita.
Eram infinitas as diferenças entre os dois: ela, desligada de normas sociais e princípios religiosos, não considerava sexo coisa suja, passava por cima de qualquer tabu para ter prazer, ser desejada e amada, e, jamais sentiu-se condenada ao fogo eterno por ter praticado relacionamentos descartáveis. Não se protegia de forma correta durante as transas, tendo sido acometida, várias vezes, por doenças sexualmente transmissíveis (clamídia, herpes, sífilis, gonorreia, hepatite) e gestações indesejadas que resultaram em abortos. Acreditava que amor à primeira vista fosse coisa de novela e de filmes, até que, sentiu-se completamente atraída pelo charme, aparência ingênua, comportamento nobre e sensível de Ivan, um homem castrado por estímulos recebidos e incorporados, e que sabia evangelizar suas necessidades libidinosas e impulsos sexuais, fazendo abstinência total de prazeres sensuais, porque sexo só era divino se a finalidade fosse gerar um filho.
Marcela, de forma cuidadosa e planejada, por meio de gestos, perfumes e roupas, atraía os olhares de Ivan e depois de algumas semanas os dois trocavam gentilizas. Ela tinha vontade doida de fazer sibiteza, enquanto ele de forma disfarçada acompanhava seus requebrados e sentia o coração bater forte e o corpo tremer. Logo, começaram a namorar e o casamento foi tão rápido, que muitos amigos não souberam. Na hora fatal, sem nenhum dos dois saber muito sobre o outro, ele, ainda solicitando a Deus benção para lhe proporcionar a fertilidade necessária para conceber um filho, descobre que a esposa está em uso de anticoncepcional e transfere sua primeira relação para um dia de possível concepção. Deita no sofá e reza até adormecer. Ela entendeu que a mente de seu esposo era a mente da sogra. Ficou a ver navios, assistiu filmes eróticos, se masturbou e foi dormir. Nas semanas seguintes, a “abelha rainha”, espiritualmente poligâmica, passou a frequentar às baladas noturnas, e às escondidas, sem ferrolho na vagina, regar casos com outros homens.
A lua de mel, tão esperada, só veio ocorrer três meses após o casamento e, o que seria um momento de prazer, virou terror noturno, pois as manchas de sangue, selo de garantia de virgindade, não foram observadas no lençol. Apesar de advertências dos amigos, não quis multiplicar dúvidas, pensar maldades, causar dor e sofrimento, preferindo “presumir” que a esposa tinha hímen complacente.
A gestação: o primeiro sinal foi um atraso menstrual seguido de náuseas, dolorimento nos seios, fadiga e sensação de inchaço. Quando recebeu a notícia da gravidez, o desafio maior era gerenciar a ansiedade que invadiu sua alma. Cada indivíduo tem ritmo, sentimentos, comportamentos e reações próprias e queria que o mundo soubesse que ele seria pai, em breve. Delirou a noite inteira ouvindo o zum-zunzum da repartição e os comentários em rádio, televisão e jornais. No dia seguinte anunciou, a todos amigos, através de e-mail, que a natureza iria se embelezar para receber seu filho.
A gravidez é um período marcado por significativas alterações emocionais e todos sabem o quão sensível a mulher fica ao sentir-se extremamente poderosa e santificada por estar gerando vida. Uma família não se forma de uma hora para outra e quando pressentiu que a esposa precisava de homem protetor e não de um companheiro fragilizado, tornou-se firme em decisões, mais atencioso, mais carinhoso e assim que a ansiedade dilui-se, procurou instruções para acompanhar o trabalho de parto. Com a chegada do primeiro filho, a vida ganhou novo sentido, tudo passou a ter mais brilho e sentia-se realizado e completamente feliz. Aos amigos íntimos se declara completo, humano e mais sensível depois do nascimento de Matheus.
A avó queria conhecer o neto e aceitou o convite para ser sua madrinha. Terminada a solenidade do batismo, cochichou no ouvido do filho: “não sou avó. A concepção desse menino ocorreu em algum feriado sexual e sinto-me apenas madrinha de meia-tigela. Você não é pai e o único meio de tirar qualquer dúvida é o teste de DNA”. Uma pulga ficou atrás da orelha. Independente da presença de traços comuns aos dois, o pai estava preparado para oferecer-lhe carinho, afeto, equilíbrio, conforto, proteção, segurança e boa escola. De antena ligada, quanto mais procurava sua presença no filho, mais sentia-se ausente.
Nos últimos anos, assistimos a um enriquecimento importante no arsenal dos meios para demonstração real de paternidade biológica. Entretanto, uma resma de desafios, relacionados aos laços sentimentais, apresenta difícil solução. Dispondo do resultado do teste de DNA, maneira precisa para determinar se duas pessoas possuem vínculos eternos desde a fertilização, a mãe exige e Ivan peticiona, em juízo, dissolução de sua união matrimonial com Marcela, devido a adultério, e anulação da certidão de registro de Matheus.
Não há veneno tão mortal para o fim de um relacionamento como a traição. A separação brusca obrigou os pais não viverem sob o mesmo teto. O filho de seis anos ficou na companhia da mãe e de um padrasto a cada semana. A criança não era seu interesse central e no ambiente hostil em que moravam, ocorriam cenas de sexo, manifestações desonrosas, imorais, agressivas, violentas e o menor vivia como menino de rua mesmo dentro de casa. O trauma trouxe-lhe regressões e passou a sonhar com monstros, urinar na cama, roer unhas, apresentar crises de birra, problemas disciplinares na escola e retraimento social. Para escapar da mãe, de seus amantes, da insalubridade psíquica e dos conflitos, foge de casa, vai vaguear pelas ruas e dormir nos bancos da praça. Certo dia, antes do amanhecer completo, acordou assustado, com o pai a seu lado. Estava sozinho em sua solidão, sujo, com medo, frio e fome. No pesadelo, pressentiu um jeito de mudar seu caminho e apressado, foi procurar o pai. Ia bater na porta e quando ele surgisse “sorriria, abraçaria suas pernas como fazia antes, beijaria seu rosto e dizia-lhe, sou seu filho, só tenho você e estou sentindo demais sua falta”. Quando a porta se abriu, Matheus indagou:
– Minha avó! Cadê meu pai?
– Moleque desgraçado. Aqui você não tem avó nem pai. Olhou-o desdenhosamente de cima para baixo e bateu a porta.
Humilhado e fragilizado, sentiu o golpe com profundidade e, sem nenhum poder sobre a situação e nem maturidade para transformar o modo de pensar e agir, de forma a evitar os efeitos negativos do estresse, retraiu-se, chorou copiosamente, e num piscar de olhos, correu em desespero, mas, ao atravessar a rua foi atropelado.
O laudo sobre o sinistro não esclareceu se houve acidente ou suicídio. A verdade está sob a terra.
Aracaju, 19 de Novembro de 2019
Obs: O autor é médico e membro da Academia Itabaianense de Letras.