No debate sobre secularização e cristianismo, a categoria de Reino de Deus é fundamental para entrarmos no núcleo da questão. Além do estilo de Jesus que refaz a imagem de Deus a partir de uma transcendência que caminha dentro da história (encarnação), tudo o que Ele disse e fez foi para preparar uma vida nova, diferente daquela pregada pela religião de sua época. Tudo isso é compendiado na ideia de Reino de Deus. Quem colabora com esta reflexão é o teólogo uruguaio Juan Luis Segundo em seu livro Ese Reino – desgrabación de 6 charlas sobre el Reino de Dios. Pessoalmente, busco identificar a ideia de Reino com aquela de secularização, que para mim se cruzam de tal modo a serem vistas como irmãs gêmeas.
A coisa mais importante em todo o ministério secularizado de Jesus foi: “Cumpriu-se o tempo e está chegando o Reino de Deus; arrependei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15). Por que se encontra no início do Evangelho esta notícia? A questão se esclarece só quando compararmos o modo de ser de Jesus com aquele de João Batista. Para este último, o Reino é algo já pronto, enquanto para Jesus se trata de um projeto que se deve preparar. João entende o Reino como um anúncio, Jesus como uma boa notícia. Para João, o Reino é iminente, por isso está próximo o juízo de Deus: “O machado já está posto à raiz das árvores, e toda árvore que não der bom fruto será cortada e jogada ao fogo”. (Lc 3,9). Ele vai chegar para julgar e só aqueles que fazem penitência serão livres do juízo terrível de Deus. Jesus, ao contrário, sonha o Reino como libertação total do homem e isso se faz só a longo prazo, necessita ser construído nas relações pessoais. Trata-se de uma dinâmica paciente por meio da qual não podemos estabelecer um tempo definitivo. Tudo depende do coração do homem e da sua abertura para acolher a boa notícia. Por isso, o Reino para Jesus é um projeto secularizado, visto que vai acontecendo dentro das coisas concretas da vida e acompanha o processo de maturidade da liberdade humana.
Enquanto João Batista está fortemente ligado a ideia de juízo, como aquele dia tremendo, Jesus se põe fora desta tradição religiosa, pois vai além dos preceitos religiosos que coagem e sufocam a liberdade humana. Jesus caminha na esteira do tempo, do cotidiano. Para Ele, a libertação de Deus acontece de modo lento, não pode gerar medo. Deve restabelecer toda a dignidade da pessoa. A propósito, este vocabulário que surge da prática de Jesus (vida, verdade, libertação, mansidão, cura etc.) não serão as grandes linhas mestras das revoluções modernas e atuais que sonham e lutam pela paz na sociedade? Não são estes ideais que constituem a energia erótica de tantos movimentos populares que resistem pacificamente contra as políticas desumanas que insistem em retomar as formas totalitárias de governar? Eis porque o Reino será sempre a ação mais autêntica de construir relações verdadeiras e sólidas em todos os tempos. É realmente um projeto a ser construído!
Como João Batista concebe o Reino em perspectiva de anúncio (linguagem típica da religião de normas e preceitos), o estilo de vida que nasce daqui é aquele isolado e rígido. Ele vive no deserto e se alimenta de mel silvestre. Trata-se de uma penitência onde não tem espaço a alegria. Essa forma de penitência funda-se a partir de uma imagem de Deus como juiz castigador, o qual recompensará apenas aqueles que se penitenciam. No entanto, como Jesus concebe o Reino em perspectiva de projeto, seu estilo de vida é vivaz e alegre. Ele é sociável, senta-se à mesa, come e bebe. Este estilo secularizado não se esconde no deserto e não julga o mundo como não ortodoxo, pelo contrário, vive a integridade do amor dentro das relações, como pessoas que estão sempre em busca, construindo a libertação, mas sem refugiar-se em formas de vida obsoletas e autoritárias.
Há ainda uma outra característica que emerge do argumento do Reino de Deus em perspectiva de secularização: trata-se do desmascaramento da ideologia. E qual é essa ideologia? Mais uma vez esta nasce do excesso de religião separada da história. A ideologia que Jesus teve que combater foi aquela que diz que os pobres são o que são pelo fato de serem pecadores, ou seja, a condição de ser pobre é ligada a condição de ser pecador. Por isso, os pobres não merecem participar da vida do templo, sustenta a ideologia da religião vigente, são etiquetados como malvistos e suspeitos, indignos de confiança. Devem ainda aceitar a maldição da lepra, conviver com a ideia de serem malditos e não amados por Deus. É neste cenário que Jesus revela o conteúdo do Reino, como desmascaramento da ideologia: As Bem-aventuranças. Aqui, Ele oferece a boa notícia do seu projeto: os pobres são felizes, porque deles é o Reino; os que choram terão as lágrimas enxugadas; todos os que carregam o fardo pesado, criado pela ideologia que associa o pobre com o pecado, Deus terá preferência por eles.
Esta libertação que Jesus realiza leva os pobres a descobrirem a primeira graça que reside no poder da conscientização, a qual não aceita a ideologia da religião que separa puros e impuros. Um dos pilares que inauguraram a secularização na modernidade foi a conquista da autonomia humana, ou seja, o homem descobre que pode pensar por si mesmo, que não necessita viver sob o jugo da falsa religião que escraviza. E é incrível como Jesus, quando falava do Reino, já havia proposto tudo isso!
Montevidéu, 20 de novembro de 2019.
Obs: O autor é religioso da Congregação da Paixão de Jesus Cristo (Passionistas). Natural de Fagundes, Paraíba. É mestre em Teologia Fundamental pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG) – Roma.