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O coração tem razões que a própria razão desconhece.  

 

Em junho de 2017 sonhei algo que me deixou profundamente impressionado, e me levou a escrever o conto “O Coração de Asas Cortadas”. Naquela noite, sonhei que via minha cabeça, que possuía asas, descer as escadas de uma casa antiga, enquanto meu coração ainda batia no resto do corpo decapitado que sangrava no andar de cima. A imagem de um coração com as asas cortadas era o contraponto àquela imagem de minha cabeça que voava livre. Era a minha síntese inconsciente da constante dialética humana de vivermos divididos entre mente e coração, razão e emoção…

Grande parte da ciência tratou de ensinar a todos nós ao longo dos anos que as emoções são produto de nossas mentes, diretamente de nossos pensamentos, do reflexo de nossas memórias, e, assim, mesmo as emoções são controláveis e passíveis de submissão à razão. Escolhendo os pensamentos, controlando o excesso deles, o seu fluxo desenfreado controlamos também as emoções. Isso é verdade, mas somente em parte.

Um estudo britânico[i] demonstrou que o coração, tido como apenas mais um músculo do corpo – porque assim tem sido considerado por grande parte da literatura científica –, na verdade também conversa diretamente com o cérebro, alterando nossos processos mentais. Esse estudo submeteu pacientes com variados problemas cardíacos a atividades levemente estressantes e a conclusão foi que a atividade cerebral nas regiões temporal esquerda e lateral prefrontal está associada ao desempenho do coração.

Em palavras simples, o coração envia ao cérebro mensagens. Há igualmente estudos Dr. Pearsall[ii], relativamente não muito novos, acerca de um grupo elevado de pessoas que mudaram seus gostos, sentimentos e vontades após receberem um transplante de coração. A troca de coração por meio cirúrgico em alguns casos foi capaz de fazer as pessoas modificarem hábitos, apreciarem comidas que não gostavam antes, ou mesmo abrirem-se para percepções de vida que nunca consideraram anteriormente.

Um dos casos mais interessantes relatados é de uma paciente que, após receber um transplante de coração, continuamente se vê atormentada por um sonho em que uma menina é assassinada por um homem. Perturbada pela repetição do sonho, e mediante a sugestão de que aquilo poderia ter algo a ver com o coração que recebera, a paciente procurou saber de quem teria sido o órgão e, de fato, descobriu-se que era de uma moça que foi assassinada em um galpão. O crime foi resolvido, porque, em razão do sonho, os detalhes do assassino foram revelados, e ele quando encontrado confessou o crime.

Ainda que se ignore qualquer aspecto transcendental, tais pesquisas obrigatoriamente nos levam a indicar que o órgão chamado de coração é um repositório de natureza emocional – fato completamente orgânico. E possui a condição de alma, essa dimensão imaterial na qual repousam também nossos afetos. Eis aí uma condição que frequentemente pode representar para nós algum embaraço.

Viciados em nossos processos mentais, em viver exaustivamente a realidade subjetiva de nossas mentes, como escravos do pensar, pensar e pensar, ignoramos a voz silenciosa de nossos corações, a voz puramente afetiva que poderia tantas vezes nos guiar a circunstâncias e escolhas mais felizes e ajustadas ao que essencialmente somos.

O resultado de ignorar o coração pode ser o sentimento de que estamos perdidos e desconectados ou vazios de nós mesmos. Simplesmente nos desconectamos da fonte de nosso próprio ser e passamos a viver puramente identificados com as coisas que pensamos, com aquilo que nossa mente resolve nos oferecer no processo – involuntário – de nossos pensamentos. Daí decorrem grande parte das coisas que atualmente nos afligem, da cisão profunda entre razão e emoção. De fato, a sensação de que a vida não vale a pena emerge de estarmos puramente identificados à sensação de que tudo necessariamente precisa estar submetido ao processo racional, isto é, a parâmetros de coerência e normalidade.

O que vale a vida, no entanto, são nossos afetos. É assim que Blaise Pascal sabiamente afirmou que há razões do coração que a razão não poderia conhecer, e de fato ela não pode. Trata-se de um código íntimo, nem sempre decifrável, nem sempre capaz de se submeter à cognição de nosso cérebro. Razão não compreende por que sentimos que devemos seguir por um determinado caminho e não por outro quando estamos diante de uma bifurcação. Mas os códigos do coração podem estar atraídos pela verdade incomunicável dos sentimentos, da busca silenciosa interior de cada um pela realização dos afetos.

Em algum nível, alguns podem associar isso à intuição, a sexto sentido, ou mesmo à voz de Deus que fala consigo, e tudo de forma irresistível e profunda. Nada disso deve ser ignorado, no entanto, eventualmente, nossos corações podem querer nos guiar para realização de nossos afetos, podem estar nos indicando as escolhas que nos farão realizar o amor. É assim que quando o ignoramos completamente terminamos doentes. Doentes de nós mesmos. E sem nenhuma inspiração significativa para viver.

Entre duas pessoas que se amam, por exemplo, nada comunicará mais que o coração. Isso são os códigos ocultos do amor já agora tão ignorados pela nossa completa identificação com nossas mentes. Nosso vício de viver dentro de nossas mentes, além de nos tirar do presente nos inserindo na subjetividade de pensar no futuro, no passado, ou de simplesmente não viver as experiências da vida tentando analisá-las, faz com que vivemos toda a vida como um sonho ilusório da mente. Mesmo o sexo, se observamos, o temos trazido para um nível mental.

Nada é mais urgente do que deixar o coração viver. Como aquele sonho de anos atrás com o qual iniciei esse pequeno artigo relatando, temos deixado nossas cabeças voarem livres por aí, racionalizando a vida, as relações, e absolutamente tudo. Enquanto o coração é apenas um órgão que pode a qualquer momento adoecer. Assim, vamos ignorando-o, ignorando-o… E quando percebemos estamos mortos interiormente e infelizes, sem sabermos por que obtivemos as coisas que perseguimos racionalmente, todavia somos incapazes de sentir verdadeiramente que qualquer dessas coisas tenha significado.

Isso não é em definitivo um convite para abandonar a razão, ao contrário, nosso processo mental também se compõe de nossas emoções, mas não é absoluto. É como se ao ignorarmos os sinais de nossos corações, ficássemos em desequilíbrio, e deixássemos de ser seres integrais, matando completamente a inspiração de viver. Esse descompasso, além de não realizar o ser, pode ser a causa de insuperável insatisfação.

Ideal será quando formos capazes de alinhar coração e mente, isto é, alma e cérebro, submeter a razão à emoção e a emoção à razão conforme a sabedoria que as circunstâncias da vida exigirem. Entretanto, somente saberemos dizer se são verdade tais coisas deixando o nosso coração viver. Esse é o verdadeiro convite: deixe o seu coração viver.

 

[i] O estudo foi realizado por Marcus Gray, do University College de Londres, e seus colegas, e publicado na edição de 2007 da revista da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, a “PNAS”.
[ii] In The Heart’s Code by Paul P. Pearsall.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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