Li a notícia do falecimento (02/12/2019) do brilhante teólogo alemão Metz. Entre os autores da teologia fundamental foi ele, sem dúvidas, aquele que mais me causou admiração e fez-me levantar importantes questionamentos sobre a práxis da fé no contexto eclesial de hoje.

Metz foi aluno e discípulo de Karl Rahner, conheceu a fundo a famosa Teologia Transcendental. Rahner insistia em uma antropologia transcendental ao afirmar que todos nós estamos condenados a viver sob a presença de Deus. Crentes ou não (cristãos anônimos), todos são destinados a Deus. Isso se constata através do desejo de infinito que portamos em nossa constituição ontológica que é aberta e capaz de Deus (capax Dei). À medida que vamos descobrindo o ato de caminhar ao encontro de Deus, Este por sua vez completa este percurso com a encarnação do Verbo que concretiza tal transcendência quando se encontra com o homem (Espírito no mundo), diferente de todos os outros animais, por possuir tal desejo de transcendência. Rahner chamará isso de união hipostática: o homem deseja o infinito, porém com a encarnação, tal desejo não se perde no além, encontra sentido em Jesus que vem ao encontro da humanidade.

Foi nesta escola de alto nível de abstração teológica que se formou Metz. Porém, ele teve a coragem de manter distância crítica desta escola de pensamento e elaborou uma outra teologia, inédita, profética, polêmica e, sobretudo, libertadora. Trata-se da Teologia Política, que ele mesmo denominará como um corretivo crítico a toda tendência de privatização da fé. Só isso seria o suficiente para mergulharmos em sua sabedoria.

Para ele, a teologia é política porque a fé é pública, não é apenas direito de uma casta que tende a privatizá-la. Metz analisa o movimento iluminista e dar-se conta que a raiz da privatização da fé está na classe burguesa, a qual prega um futuro de progresso apenas a seus membros, pois são detentores do poder e têm todos os meios para alcançar o que desejam. Esse futuro burguês, contudo, deve ser interrompido pelo futuro messiânico que remete a experiência subversiva de Jesus, o qual leva a cada um diante do Pai – transforma a todos em sujeitos -, sobretudo aqueles não possuem o poder, os esquecidos, os pobres, os abandonados, os sem nome, aqueles que morreram e caíram no esquecimento, que não viveram com dignidade, que passaram neste mundo e foram feitos instrumento de manipulação dos poderosos. É a partir destes esquecidos que Metz irá desenvolver uma das mais importantes categorias de sua teologia política, a Memória Passionis, que ele gostava de chamar Memória perigosa, porque abala os alicerces de uma religião burguesa e convida a abraçar o modo profético do agir de Jesus.

Além da categoria de Memória Passionis, a teologia política de Metz desenvolve aquela de Solidariedade. Aplicada a cristologia, mudamos por completo a nossa maneira rotineira de ler a tradição cristã. Para falar de solidariedade é necessário justificar o drama do sofrimento das vítimas. Nesta perspectiva, Metz dirá que depois da tragédia de Auschwitz a teologia para dar credibilidade da fé deve ser Teodiceia.

Durante os terríveis anos da Segunda Guerra Mundial o jovem Metz foi obrigado a servir nos campos de concentração. Em uma das melancólicas manhãs de inverno viu um grupo de amigos serem levados a câmera de gás. Aqueles adolescentes, com quem ele tinha partilhada seus sonhos de futuro na manhã do dia anterior a morte deles, agora não estão mais com ele. Restou-lhe um grito sufocado, aquele grito carregado de interrogações e que pôs em crise a experiência de fé que o jovem recebeu do catolicismo tradicional de sua época. Quem fará justiça as vítimas? O que fazer para não as deixar cair no esquecimento da história? Será que os clássicos artigos de fé da religião são capazes de oferecer uma resposta credível ao drama do sofrimento dos inocentes? Esta experiência revela uma outra importante característica da teologia de Metz: trata-se de seu aspecto biográfico, ou seja, de uma reflexão que parte de experiências pessoais, de algo existencial. Não é teórica, como pretendia Rahner.

Se Metz tivesse sabido do massacre dos jovens da boate de Paraisópolis, com certeza ele recordaria sua dolorosa experiência de Auschwitz e, ao invés de perguntar: onde estava Deus naquele momento de brutalidade? ele perguntaria onde estão os cristãos de hoje? Isso porque a fé é uma práxis, não é a transferência da nossa responsabilidade a Deus. Somos nós que devemos agir, a partir da vida de Jesus que foi subversivo das estruturas desumanas de seu tempo.

Quando o pai da teologia política fala de solidariedade não está simplesmente nos provocando a arregaçar as mangas e lutar, ele vai muito mais além e nos põe em contato com a fé de Jesus. Se para Metz a fé consiste naquela inegociável práxis libertadora, então temos que olharmos para a experiência de fé do povo de Israel. Ele dirá que Israel é uma paisagem de lamentos. Lamenta porque foi sempre um povo que lutou sem aceitar as falsas consolações oferecidas pelos vencedores. Veja-se o caso de Jó que não tem medo de apresentar a pergunta de seu sofrimento diante de Deus, não aceita as velhas respostas da tradição.

Se para Metz a cristologia é uma ação de solidariedade que realiza a libertação plena do homem, então não devemos nos contentar com o mito dos vencedores. Estes insistem em fornecer falsas explicações. Os vencedores, por exemplo no caso do massacre citado, podem até tentar consolar as famílias das vítimas criando falsas versões da morte para mascararem o crime dos carrascos, porém a morte delas não nos permite dormir em paz, pelo contrário, deveria fazer-nos entrar na causa dos que sofrem, assumir a nossa responsabilidade solidária, buscando as reais causas e não deixar que a morte dos jovens massacrados seja apenas matéria dos futuros livros de história. Na mística de Metz, Jesus morre de olhos abertos porque não esquece de ninguém, leva a todos na presença do Pai e os torna sujeitos. O mito dos vencedores, por outro lado, rouba a dignidade do sujeito à medida que esconde as causas concretas da morte das vítimas. Algo parecido, como sinal profético, foi a atuação das mães da praça de maio que se reuniam para fazer manifestações, vestindo lenços de cabeça branca para simbolizar as fraldas de seus filhos perdidos. Desta forma, elas pediam ao regime da ditadura argentina que mostrasse a verdade do desaparecimento de seus filhos. Isso é um caso concreto de Memória Passionis, a qual é sempre subversiva e perigosa.

Pe. Metz nos deixou uma herança teológica e um testemunho profético inesquecível. Ainda temos muito que aprofundar do seu legado que tanto nos motiva a sermos cristãos subversivos, como Jesus de Nazaré. Mesmo sem o ter conhecido pessoalmente, ele marcou profundamente minha formação cristã e por isso sinto-me grato por sua originalidade teológica. Descanse em paz e muito obrigado!
Montevidéu, 04 de dezembro de 2019.

Obs: O autor é religioso da Congregação da Paixão de Jesus Cristo (Passionistas). Natural de Fagundes, Paraíba. É mestre em Teologia Fundamental pela Pontifícia Universidade Gregoriana (PUG) – Roma.  

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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