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Eu seria cristão, sem dúvida, se os cristãos o fossem vinte e quatro horas por dia.” Mahatma Gandhi

Ouvi essa frase há muito, quando, adolescente fiz Encontro de Jovens com Cristo, no colégio Salesiano. Confesso que ela me impressionou bastante, naquele momento e, ao longo dos anos, nunca consegui esquecê-la.

Sempre participei de Encontros, inclusive, depois de casada, continuei a participar e, já adulta, participei de Encontros de Jovens, tanto ajudando na organização, quanto em palestras. Ajudar na organização eu gosto muito. Mas dar palestras, falar em público, por menor que o público seja, é para mim uma enorme dificuldade. Participar desses Encontros me renderem grandes amizades, algumas com mais de quarenta anos, outras com trinta ou vinte.

Mas, os bastidores dos Encontros, principalmente dos encontros de Casais, sempre me faziam lembrar da frase de Gandhi. Lembro de um acontecimento, durante um dos Encontros, que não presenciei, mas que me foi contado que, durante uma palestra sobre ser cristão, o casal palestrante foi interrompido por uma pessoa que estava fazendo o Encontro. O rapaz levantou e questionou a prática do cristianismo do palestrante e contou sobre o comportamento agressivo e pouco respeitoso dele quando, há um tempo, haviam se envolvido em um acidente de trânsito. O rapaz disse que ia embora pois aquilo era uma farsa e ele não ia mais participar daquilo. Levantou-se e foi embora com a esposa.

Essa história virou meio que um alerta dentro do Encontro onde eu participava, para que os casais que se dispusessem a dar palestra tivessem cuidado com a coerência entre o que iriam falar e a sua prática de vida.

Como já falei várias vezes, comecei a participar de grupos de reflexão sobre o evangelho aos 14 anos. Um grupo de casais, incluindo meus pais que, todas as segundas-feiras, se reunia para refletir sobre o evangelho do domingo. Foi a minha primeira experiência com reflexão sobre textos bíblicos, com a tal da exegese, quando havia a preocupação de trazer o texto para a atualidade. A partir desse grupo que eu adorava participar, mesmo sendo a única adolescente, parti para o meu primeiro e amado grupo de jovens, o SOS, descobri a Teologia da Libertação, Frei Betto, Leonardo Boff e passei a admirar ainda mais Dom Helder que, no grupo de adultos que eu participava, era amado, respeitado e seguido, vamos dizer assim.

Hoje, depois de cinquenta anos de caminhada nas estradas do cristianismo, percebo que, para mim, ainda falta muito caminhar para que eu possa dizer que vivo o evangelho no meu dia a dia. Há coisas tão difíceis no que nos pede o evangelho que me parece ser uma quase uma tarefa hercúlea ser, realmente, cristão.

Estar dos lados dos pobres, ser a favor e lutar pela distribuição de renda, querer, de verdade, que todos tenham vida em abundância, não ter discriminação racial, de cor, religião, classe social ou gênero, a gente consegue, trabalhando os velhos e abomináveis conceitos que nos são incutidos, poderíamos dizer, no DNA. Defender os Direitos Humanos, a justiça social, combater a violência pacificamente, tudo isso a gente consegue fazer, independentemente de ser cristão. Conheço muitos ateus que agem assim, por questões de princípios humanitários.

Mas o ser cristão 24 horas por dia, como falava Gandhi, exige muito mais do que lutar contra a injustiça social ou contra os preconceitos que hoje, mais do que nunca, correm soltos mundo afora.

Ser cristão de verdade é mais do que saber interpretar com maestria um trecho do evangelho. É mais do que ser engajado em grupos religiosos ou movimentos sociais. Vai muito além da louvação, da reverência, da participação em missas e eucaristia. Ser cristão é, antes de qualquer coisa, viver a eucaristia no dia a dia. É partilhar não apenas bens materiais, mas é partilhar a vida. É colocar, de verdade, o bem coletivo acima dos interesses pessoais, das rixas e das competições, é a prática do serviço e não se deixar seduzir pelo poder de cargos ou títulos que não significam absolutamente nada.

Nesses Encontros dos quais participei ouvi muitas palestras, muitas falas sobre o que é ser cristão e, algumas delas ficaram até hoje na minha cabeça como alguém falando que ser cristão não é apenas frequentar a missa e comungar, mesmo que todos os dias. Ser cristão é ver o pobre que está na porta da igreja e não o ignorar, como se fosse invisível. É tratar os funcionários com respeito, à sua pessoa e aos seus direitos, seja em uma empresa, seja na própria casa e pagar salários dignos.

Uma vez uma vez, em uma reunião, alguém comentou com um padre que as homilias dele a inquietavam e que saia da missa angustiada, intranquila. E ele respondeu: “ainda bem que você se sente assim. Isso significa que minhas homilias estão cumprindo o seu papel. Quando alguém me disser que está saindo das missas que celebro com a alma leve e cor de rosa, aí eu vou começar a me preocupar”.

Ao longo dessa minha caminhada encontrei tanta gente que nem consigo mensurar. Foram muitos encontros, grupos, movimentos e, todos eles tiveram um papel importante em minha vida, inclusive profissional, quando ao fazer o jornal O BALAIO, no começo dos anos 1970, descobri o quanto queria ser jornalista.

Foram muitas experiências boas que traçaram a minha trajetória religiosa e política. Mas, uma coisa foi constante, ao longo de todos esses anos, a competição, a disputa, nos bastidores, pelo poder, um poder que deveria ser serviço e que se transformava em títulos, em arrogância pelo cargo ocupado, prejudicando o coletivo. O poder é sedutor, mas também é efêmero e, muitas vezes, é conseguido às custas de deterioração de relações e até mesmo dos grupos ou instituições. Às vezes se vai tão rápido que quem o conquistou não se dá conta de sua temporalidade.

E isso eu estou falando apenas sobre o que acontece entre os leigos. O que acontece nos bastidores da Igreja, nem ouso comentar.

Cinquenta anos depois de ouvir a frase de Gandhi, ela ainda continua viva, na minha memória e na existência do próprio cristianismo.

O que para mim é a parte mais difícil em ser cristão? É ser altruísta, perdoar infinitamente, colocar em prática a frase de Dom Helder “as pessoas de pesam? Não as carregue nos ombros, carregue no coração”. Como carregar no coração se a vontade, às vezes, é derrubar dos ombros?

Não suporto disputa ou competição, já falei isso várias vezes também. Mas sempre encontro quem queira competir comigo, quem me provoque, me passe a perna, puxe o meu tapete, quando, muitas vezes, estou apenas executando as tarefas que me cabem.

Nesse tempo de advento fico buscando a conversão, o renascer da minha fé e das minhas ações. Confesso que é sempre muito difícil. A imperfeição que caracteriza a nós todos, é cruel e difícil de ser transformada.

Quando alguém me pergunta a minha religião, eu respondo que tento ser cristã. Porque para mim não importa a denominação religiosa. Sigo na Igreja Católica não porque ache que seja a melhor ou a mais certa. Pelo contrário. As restrições são muitas. Mas todas têm seus problemas e contradições. E houvesse mais Dom Helderes e Franciscos, haveria uma Igreja mais próxima do evangelho.

Sigo tentando ser cristã, tentando perdoar quem me fere e magoa, tentando suportar o peso das pedras do caminho, tentando, enfim, ser uma pessoa melhor. Está difícil, confesso. A cada Natal percebo o quanto ainda estou longe de ser cristã, o quanto o peso nos ombros às vezes fica insuportável e não consigo transferir para o coração. Mas não desisto. Sou teimosa. Faço um balanço do eu coração e descubro que já consegui fazer muitas transferências dos ombros para ele. E isso me alegra e me anima a seguir em frente. E sempre com a frase de Gandhi na cabeça, confirmo o que aprendi e que é importante para qualquer momento de nossa vida: Mais prática e menos teoria. Lembremos sempre do que significa a palavra ORAÇÃO, é orar, rezar, porém, resumindo o que diz São Paulo em sua carta a Tiago, 2, 14-26 “A Fé sem obras é morta”.

Não basta participar de missas e celebrações, de reuniões e caminhadas a favor de uma causa, de protestos contra o que estão fazendo com o meio ambiente. Não basta entender o que dizem os evangelhos e falar bem. Temos que ser coerentes com o que falamos em nosso dia a dia. E isso vale pra mim também que, nesse final de ano, estou lutando contra a vontade de fazer a tal limpeza nos ombros.

Para finalizar acredito que poderemos nos considerar realmente cristãos quando, um dia, não apenas lermos, mas vivermos o que está em João 13, 35: “Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros” 

Quando as pessoas olharem para nossos grupos, nossos movimentos, nossas comunidades e comentarem: “Vede como eles se amam!” (Apolog. 39)

Obs: A autora é jornalista, blogueira e Assessora de Comunicação do IDHeC – Instituto Dom Helder Camara.
Site – jornalistasweb.com.br
blogs – misturadeletras.blogspot.com.br 

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Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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