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Nunca esquecerei aquele olhar. Gélido.

O que a mulher ia dizendo à filha, palavras aparentemente corretas, quase doces, como conselhos, saíam de lábios contornados com o batom da cor adequada para o momento, combinando com o penteado certo, um vestuário sóbrio e elegante e com sua postura, ereta, mas que não chegava a denunciar arrogância.
Falávamos do comportamento de sua filha, uma adolescente rebelde. Uma moça afetuosa, sem empenho nos estudos e nenhum comprometimento com a própria segurança .
Nosso encontro, previamente agendado, aconteceu em cadeiras de ferro, num terraço que se abria para o lindo jardim da escola, numa manhã azul de primavera. Impossível esquecer. Tudo era vida a nosso redor, combinando bem com a crise de crescimento da jovem. Mas o olhar que a mãe lhe lançava era mortífero e só pôde ser percebido, porque escapava ao controle. Provavelmente, as regras de etiqueta, ensinadas pela Socila, às mulheres de sua época, não incluíam a educação do olhar.

Mãos e olhares  denunciam.  Há que prestar-lhes toda a atenção possível.

Acho que não correrei o risco de esquecer o que está acontecendo a minha volta, hoje. A indignação não me permitirá puxar a cortina sobre o cenário de filme de terror que estamos vivendo.
Venho moderando meu tom, na escrita e rareando as conversas, a viva voz. Busco incessantemente uma forma de não causar mais estragos, em meio a tanta destruição a que assisto, impotente. No entanto, não posso controlar meu sentimento de espanto, frente a  hipocrisia e  cinismo tão afrontantes.

Aquela mulher, que me congelou a alma, tempos passados, recusando-se a compreender que era de afeto e zelo a carência de sua filha, embora lhe fossem dadas todas as regalias que o dinheiro pode comprar, vem vivenciando, ano após ano, calvário sobre calvário, numa família repleta de dependentes químicos, disputas por heranças e desamores. Não sei o quanto ela tem aprendido com tudo isso, nem se, em algum momento, seu olhar se humanizou. Temo que não.

Da mesma forma, tantos e tantos que, nesse momento, defendem seus direitos individuais (falando dos bens materiais e de uma pretensa segurança de que não podem abrir mão), passando por cima, sem sequer olhar, de multidões desassistidas, de corpos trucidados, de encarceramentos injustos, de retirada de direitos essenciais dos cidadãos comuns, talvez nunca mudem os gestos de descaso, que lhes garantem uma distância protetora.

Se aquela mãe tivesse, exasperada, sacudido sua filha, na minha frente, eu teria podido interferir e acudir, a ambas, para que, enfim – quem sabe? – buscassem se conhecer, de fato. Mas era impossível acusá-la de descaso apenas por um olhar, que eu captei por segundos. E, dessa forma, indefesa, deixei-me ferir também.

No Brasil de hoje, a violência se derrama em atos, mas também pela ausência deles. Apenas comentar, com lamentos polidos, a desgraça de nossos irmãos e a destruição do país e do  povo é uma forma de vivermos, quase como se fora ficção, a realidade mais torpe em que estamos mergulhados.

Fingir não ver também é violência. Talvez a mais cruel de todas.

Este texto expressa exclusivamente a opinião do autor e foi publicado da forma como foi recebido, sem alterações pela equipe do Entrelaços.


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